Jesus e o geraseno, tapeçaria de Andrey Madekin |
A coisa mais aterradora para o incrédulo é deparar-se com um milagre. Não pode haver uma situação mais embaraçosa para um cético do que estar frente a frente com o sobrenatural de Deus. O sinal ou prodígio inexplicável é a maneira mais contundente de deixar um ateu completamente atônito. Pois bem, a narrativa do endemoninhado geraseno, em Lucas 8.26-39, é apenas uma dentre tantas que a Bíblia nos fornece como veracidade dessas declarações anteriores.
Mas o que prevalece é que por mais que reflitamos nas palavras desse referido texto, ele sempre deixará no ar a seguinte pergunta: por que os habitantes de Gerasa, que sofriam horrores com as perversidades daquela pessoa constantemente transtornada, e que causava terror e aflição por toda a região, ao ver o antes endemoninhado curado e lúcido quer se desfazer de imediato do agente que o fez recuperar a razão? Seria pelo fato de que será sempre mais difícil para nós lidarmos com o medo do desconhecido do que com aqueles medos que já conhecemos a sua origem e com os quais já estamos acostumados?
Existe em Atos dos Apóstolos uma expressão que foi traduzida para a nossa língua, mesmo usando termos pouco conhecidos, nos abre uma janela para entendermos o que se passava na cabeça de Paulo no momento exato da sua conversão na estrada de Damasco: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões. (At 26.14). No bom português seria algo parecido com isso: Por que você, Saulo, fica dando murro em ponta de faca, tentando entender com a lógica da razão o que Deus está querendo fazer na sua vida? Para o bem da verdade, não havia mesmo qualquer motivo racional para fazer com que Deus escolhesse um assassino frio e perseguidor cruel da igreja para realizar a missão mais complexa e mais grandiosa daquele momento em especial: levar o evangelho para além das fronteiras de Israel às pessoas a quem o Judaísmo predominante julgava indignas de receber a graça de Deus em suas vidas. Para pessoas que muito provavelmente odiariam qualquer manifestação religiosa que tivesse vínculo com aquele Judaísmo que sabiam ser discriminador e elitista.
Embora a missão de Paulo não fosse das mais fáceis e agradáveis, o seu conteúdo ainda não explica, ou sequer ilumina parcialmente a nossa dúvida quanto à pergunta levantada no início da nossa meditação sobre as pessoas da cidade do endemoninhado, a não ser que alinhemos devidamente ambas as situações.
Primeiramente precisa ficar claro que tanto Paulo quanto o endemoninhado foram escolhidos para executarem a missão de Deus em circunstâncias que lhes eram totalmente adversas. Situações em que os escolhidos não poderiam ser pessoas que viveram tão somente experiências comuns ao longo de suas vidas. Pessoas que viveram experiências tão profundas que nem o sobrenatural pudesse lhes causar algum espanto. Somente a partir das suas impensáveis escolhas eles teriam, então, condições para conviverem com os sinais e prodígios que Deus iria realizar por meio deles, sem, com isso, perderem o foco, estarrecendo-se com os milagres e deixando de perceber os sinais que Deus está mostrando através deles.
A segunda evidência que aflora da Bíblia é a coerência que existe entre as palavras que Jesus dirige ao endemoninhado e a referência que Deus faz de Paulo a Ananias. O geraseno manifesta o desejo de ser um seguidor de Jesus nos moldes daqueles que já o acompanhavam. Ele queria ser mais um entre os discípulos, e muito provavelmente se destacaria, mas Jesus tem para ele uma missão muito mais difícil: falar de Deus para as pessoas que já o conheciam.
—Volte para casa e conte o que Deus fez por você. Então o homem foi pela cidade, contando o que Jesus tinha feito por ele (Lucas 8.39).
De maneira semelhante, Deus retruca o negativismo de Ananias acerca de Paulo:
— Senhor, muita gente tem me falado a respeito desse homem e de todas as maldades que ele fez em Jerusalém com os que creem no Senhor. E agora ele veio aqui a Damasco com autorização dos chefes dos sacerdotes para prender todos os que te adoram (At 9.13-14). Mas Deus mostra a Ananias que havia escolhido Paulo justamente pelos motivos que ele considerava inadequados:
— Vá, pois eu escolhi esse homem para trabalhar para mim, a fim de que ele anuncie o meu nome aos não judeus, aos reis e ao povo de Israel. Eu mesmo vou mostrar a Saulo tudo o que ele terá de sofrer por minha causa (At 9.15-16).
Seja em que passagem for a Bíblia quer nos mostrar que o milagre pode e deve ser motivo de aversão e espanto para todo aquele que não crê. Contudo, para o que crê, ele deve ser simplesmente o polarizador nas nossas lentes, para que possamos ver através deles qual é a verdadeira vontade que Deus quer nos fazer manifesta.
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