Tempestade no Mar da Galileia

Tempestade no Mar da Galileia, Rembrandt

E ele, despertando, repreendeu o vento e disse ao mar: Acalma-te, emudece! O vento se aquietou, e fez-se grande bonança. Então, lhes disse: Por que sois assim tímidos?! Como é que não tendes fé? E eles, possuídos de grande temor, diziam uns aos outros: Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem? Marcos 4.36-41

Sossegai, hino 342 no Hinário Evangélico, é o hino preferido do meu filho, e foi inspirado justamente nesta passagem. Assim como o Rev.William Entzminger, autor do hino, todos aqueles ousaram refletir sobre este texto, o fizeram a partir do milagre de Jesus, em que ele, para o assombro de todos, acalma uma terrível tempestade, que é, ao lado da multiplicação de pães e do caminhar sobre as águas, os três milagres de Jesus mais espetaculares aos nossos olhos. Perdão por ter incluído todas as pessoas do mundo no meu argumento. O holandês Rembrandt Harmenszoon van Rijn, foi e continua sendo uma agradável e instigante exceção.

Usei um de suas obras, a chamada Tempestade no Mar da Galileia, como ilustração da postagem de ontem, e de lá para cá não consigo mais parar de pensar nela. Vocês podem vê-la na internet e mais em lugar algum, porque ela foi roubada em 1990 e, possivelmente, destruída.

Alheio ao impacto que o perigo da cena que envolveu Jesus e seus discípulos causa em nós mortais, que, obedientes à instrução “Sossegai” do hino, a traduzimos por confiança e paz, Rembrandt conseguiu captar um momento singular e absolutamente oposto. Ele optou por retratar, e o fez com genialíssima felicidade, os longos dez segundos que precederam à ordem de Jesus que transformou a tempestade em bonança. Seus traços mostram com detalhes todo o desespero da luta da fragilidade humana contra a hostilidade da natureza. Aqui vemos que uns tentam desesperadamente segurar e se segurar à vela rasgada; outros, em vão, tentam dar uma direção à embarcação, quando nem sabem para onde ir; alguns apenas se aterrorizam, enquanto que um deles vomita de tanto desespero.

Pode até ser que outro mestre virtuoso tenha tido inspiração semelhante. Confesso aqui a minha pouca educação artística e a minha total falta de sensibilidade às artes, mas Rembrandt me tira do sério. Rodin já havia me dado uma bela pernada, ao me fazer chorar copiosamente, no momento em que estava despretensiosamente apreciando a sua coleção exposta no Museu de Belas Artes, me deparei com a escultura do Filho Pródigo. Nunca antes desse dia eu tinha conseguido me ver por inteiro em uma imagem. Aquela escultura sou eu, um maltrapilho caído e desesperado clamando por alguma ajuda dos céus. Ali Rodin me mostrou quem realmente eu sou.

Mas aqui neste quadro ele fez diferente. Agora quem está presente é ele. Ele mesmo. Rembrandt se incluiu na tela com seu bonezinho familiar, que é a marca registrada dos seus autorretratos. Ele não estava pescando, tampouco está se afligindo. Ele está ali somente parado, olhando fixa e diretamente para mim. Ele já não quer mais saber o que eu sinto diante da cena, não me questiona sobre o que a passagem bíblica me faz refletir, muito menos me pergunta quais são as lembranças em que a cena me faz mergulhar. Ele quer mesmo saber o que eu vou fazer diante do quadro que me apresenta. Ele está me cobrando muito mais do que um sentimento de paz e tranquilidade. Seus olhos inquisidores estão me desafiando a experimentar um estado de consciência que está para além do estado de fé e confiança. Me cobram uma atitude diante do desespero daquele que mal tem um pedaço de pano rasgado para se valer numa hora de extrema aflição, que não suporta mais digerir nem as calamidades naturais e nem as artificiais, mas ainda assim continua à espera de um milagre que não vem.

Não fiquei tonto, na realidade eu sou um tonto porque não creio cegamente naquilo que as Escrituras me dizem. O autor da Carta aos Hebreus começou escrevendo assim: Antigamente, por meio dos profetas, Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados. Como se este alerta não bastasse, o próprio Jesus advertiu: Se eles se calarem, as pedras clamarão. Que bela pedra foi Rembrandt Harmenszoon van Rijn! Como é que ele conseguiu clamar tão alto? Como é que eu fui ouvi-lo somente agora?

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