Deus proverá, vitral na Catedral de Nevers |
A música popular brasileira, através dos seus geniais
autores, produziu duas pérolas que narram uma mesma situação do cotidiano: uma
conversa de botequim. A primeira, composta por Noel Rosa e Vadico, nos anos 1930,
recebeu merecidamente este nome, pois descreve o diálogo de um malandro com um
garçom de forma hilária e pejorativa, mas muito próxima da realidade. A
segunda, que em 1979, recebeu o título de Amigo é pra essas coisas, foi
composta por Aldir Blanc e Silvio da Silva. Essa trás consigo a dramaticidade e o
caos da política econômica brasileira.
Mas do que simplesmente descrever o jeito malandro e
irreverente do brasileiro, as composições mostras dois estágios diferentes de
pessoas que, por decisão própria ou por força das circunstâncias, sobrevivem às
custas da economia informal e ilegal: Os jogos de azar. Mas é nas entrelinhas que
vamos encontrar aquilo que podemos chamar de inspiração para esta meditação: as
expectativas das pessoas quanto ao seu futuro.
Se Noel quis fazer com que o seu personagem confiasse no
Jogo do Bicho a sua oportunidade de ascensão social, Aldir Blanc colocou alguma
esperança em um dito popular que, embora tivesse o seu sentido original
distorcido, teve as suas origens no texto das Sagradas Escrituras: "Deus proverá", que repercutiu a declaração radical de fé do
patriarca Abraão. Deus proverá veio a ser Deus dará e passou a ser o lema daqueles que, na ociosidade, esperam que a
providência divina lhes dê o que deveriam conseguir através do trabalho
honesto.
Diferenças gritantes existem entre aquele que na sua total
incapacidade de resolver o dilema no qual está envolvido, decide, por meio de
uma fé incondicional, entregar-se nas mãos de Deus e aqueles que depositam a sua
fé em uma eventual mudança no rumo das circunstâncias.
Quando, no final da sua composição, Aldir Blanc usou a
expressão "Eu vivo ao Deus dará", o fez após descrever uma situação
inusitada e surpreendente. Pois o seu malandro, que havia pedido ao amigo, com
quem trocava confidências na mesa de uma bar, que lhe pagasse uma bebida, após contar a situação de penúria em que se encontrava, inesperadamente recusa
a ajuda financeira desse mesmo amigo, sob o pretexto de que a amizade desse
amigo já lhe havia lhe dado toda a ajuda de que necessitava naquele momento.
Ele preferiu, em favor dessa grande amizade, escolher o apreço, pois como ele
mesmo diz: O apreço não tem preço.
Não posso sequer imaginar a apreensão e a dor que estavam
por trás da resposta de Abraão a Isaque. Por conta disso, não podemos, da mesma
forma, julgar o que está por trás de uma fé que incondicionalmente se entrega à
providência. Mas podemos, sim, tentar sentir o quanto pesa uma decisão desse
tipo.
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