Conversas de botequim

Deus proverá, vitral na Catedral de Nevers

Perguntou-lhe Isaque: Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? Respondeu Abraão: Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto; e seguiam ambos juntos. Gênesis 22.7

A música popular brasileira, através dos seus geniais autores, produziu duas pérolas que narram uma mesma situação do cotidiano: uma conversa de botequim. A primeira, composta por Noel Rosa e Vadico, nos anos 1930, recebeu merecidamente este nome, pois descreve o diálogo de um malandro com um garçom de forma hilária e pejorativa, mas muito próxima da realidade. A segunda, que em 1979, recebeu o título de Amigo é pra essas coisas, foi composta por Aldir Blanc e Silvio da Silva. Essa trás consigo a dramaticidade e o caos da política  econômica brasileira.

Mas do que simplesmente descrever o jeito malandro e irreverente do brasileiro, as composições mostras dois estágios diferentes de pessoas que, por decisão própria ou por força das circunstâncias, sobrevivem às custas da economia informal e ilegal: Os jogos de azar. Mas é nas entrelinhas que vamos encontrar aquilo que podemos chamar de inspiração para esta meditação: as expectativas das pessoas quanto ao seu futuro.

Se Noel quis fazer com que o seu personagem confiasse no Jogo do Bicho a sua oportunidade de ascensão social, Aldir Blanc colocou alguma esperança em um dito popular que, embora tivesse o seu sentido original distorcido, teve as suas origens no texto das Sagradas Escrituras: "Deus proverá", que repercutiu a declaração radical de fé do patriarca Abraão. Deus proverá  veio a ser Deus dará e passou a ser o lema daqueles que, na ociosidade, esperam que a providência divina lhes dê o que deveriam conseguir através do trabalho honesto.

Diferenças gritantes existem entre aquele que na sua total incapacidade de resolver o dilema no qual está envolvido, decide, por meio de uma fé incondicional, entregar-se nas mãos de Deus e aqueles que depositam a sua fé em uma eventual mudança no rumo das circunstâncias.

Quando, no final da sua composição, Aldir Blanc usou a expressão "Eu vivo ao Deus dará", o fez após descrever uma situação inusitada e surpreendente. Pois o seu malandro, que havia pedido ao amigo, com quem trocava confidências na mesa de uma bar, que lhe pagasse uma bebida, após contar a situação de penúria em que se encontrava, inesperadamente recusa a ajuda financeira desse mesmo amigo, sob o pretexto de que a amizade desse amigo já lhe havia lhe dado toda a ajuda de que necessitava naquele momento. Ele preferiu, em favor dessa grande amizade, escolher o apreço, pois como ele mesmo diz: O apreço não tem preço.

Não posso sequer imaginar a apreensão e a dor que estavam por trás da resposta de Abraão a Isaque. Por conta disso, não podemos, da mesma forma, julgar o que está por trás de uma fé que incondicionalmente se entrega à providência. Mas podemos, sim, tentar sentir o quanto pesa uma decisão desse tipo.

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