Susana e os velhos

Susana e os velhos, Annibale Carracci
E ela disse gritando: Deus eterno, que vês o escondido, que sabes tudo antes que aconteça, tu sabes que deram falso testemunho contra mim, e agora eu tenho que morrer, sendo inocente daquilo que sua maldade inventou contra mim. 
Disse Daniel aos juízes: Tua calúnia se volta contra ti: o anjo de Deus recebeu a sentença divina e vai te partir a meio. Daniel 13.42 e 55 (texto encontrado apenas nas Bíblias Católicas)

A imagem que ilustrou a postagem de ontem e que também serviu de inspiração para esta meditação, embora possa não transparecer à primeira vista, tem tudo a ver com o tema da mensagem, pois, se por um lado retrata um inusitado episódio na história de Israel que faz referência tanto ao exílio babilônico, por outro denuncia a exploração da mulher na comunidade religiosa. Porém, esse lapso de associação de ideias não é culpa do protestantismo brasileiro, mas sim dos setenta rabinos que compuseram o canon bíblico que adotamos, por terem deixado de fora tão apropriada e relevante questão, coisa que a Septuaginta, o canon bíblico adotado pela Igreja Católica, graças a Deus, não o fez.

Em rápidas palavras, Susana, esposa de Joaquim, era uma belíssima mulher, educada segundo a lei de Moisés, fiel ao seu Deus e ao seu marido até as últimas consequências. Apesar da sua conduta recatada, despertou o interesse sexual de dois velhos juízes que frequentavam a sua casa. Diz o texto deuterocanônico de Daniel 13 que os dois se arderam em desejo pela moça e tramaram uma forma de possuí-la, mesmo contra a sua vontade. Em uma ardilosa trama, bem repugnante por sinal, ameaçaram-na para fazer sexo com eles ou seria ela denunciada como a sedutora da história. Quando se recusou participar e gritou por socorro, os velhos fizeram o mesmo, gritaram também, atestando assim o flagrante. Num julgamento fulminante, Susana foi condenada e estava prestes a ser apedrejada, quando Daniel entra em cena e pede um novo julgamento, no qual faz a acareação das acusações dos juízes, só que dessa vez, isolando um do outro. Uma pergunta simples fez com que o depoimento dos canalhas, assim o próprio texto os chama, caísse em contradição, revelando toda a culpa e a má intenção dos velhos juízes, e, consequentemente, fazendo com que a inocência de Susana ficasse patente, invertendo, dessa forma, o juízo e a punição.

Logicamente que esse breve relato não faz jus à beleza da narrativa original e, muito menos, consegue expor a realidade do clima e a dramaticidade da situação, que são mais que providenciais e atuais. Por isso recomendo a leitura.

Fico aqui pensando o porquê de uma inspiradora e encorajadora narrativa não ter sido incluída na Bíblia que nós protestantes usamos. Que motivos acarretariam tamanha omissão? Será que já paramos para imaginar o quanto ela seria útil hoje em dia, assim como poderia ter sido ao longo da história da igreja, às mulheres que sofrem permanentemente de assédio sexual de seus pastores, de suas pastoras e de pessoas influentes das nossas igrejas? Será que dá pensar que diante de um texto tão revelador, tais pastores não teriam tanto poder de argumentação nas suas sórdidas chantagem, caso essa história fosse mais conhecida em nosso meio? Divagando um pouco mais, será que não daria para pensar, também, que a narrativa ficou de fora pela iniciativa providencial de alguns dos velhos rabinos que agiam ou maquinavam de forma semelhante em seu tempo?

O fato é que a Bíblia larga na frente, e mais uma vez nos apresenta um relato inusitado de toda a literatura, até então. Fato também que ele não passou em branco no passado rcente, pois ficou registrado nas belíssimas obras de mais de uma dezena de artistas plásticos da antiguidade, sendo que alguns deles, como é o caso de Rembrandt, o fizeram seguidas vezes, sempre contrapondo as imagens de culpa e inocência nos rostos dos envolvidos.

Mulheres, vejam que arma poderosa Deus colocou nas mãos de vocês! Não se acanhem em esfregar esse texto na cara de quem pretende obter alguma vantagem de vocês por meio da influência dos seus cargos e títulos, seja essa vantagem financeira, doutrinária ou mesmo sexual. Caso um dia esse texto seja mais lido e mais divulgado, podem ter a certeza de que pelo menos duas coisas vão passar a acontecer: os homens vão ter que muito mais criativos e convincentes em suas cantadas e que, nas igrejas  vamos ter mais meninas correndo em seus pátios atendendo pelo nome de Susana do que pelo nome de Rachel, Ester e Débora juntas.

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