Nem só de pão viverá o homem

Colheita do maná, Giuseppe Angeli
Na tentação do deserto Jesus faz uma apropriada e oportuna citação, são as palavras que serviram como título desse texto. Contudo, não se permitiu esquecer de citar que é originariamente um texto do Primeiro Testamento, mais exatamente um texto do Deuteronômio. Ao se tomar consciência dessa paridade qualquer um pode concluir que poucas relações podem haver entre os dois contextos, não somente pelas situações que se apresentam de modo diferente, como também pela época, mas, principalmente, para as pessoas a quem ela é dirigida. E talvez sejam justamente essas diferenças que nos esclareçam o quão profundas essas palavras são.

Não se trata aqui de uma aferição de prioridades ou de que vem na frente: Deus ou pão? Mas essa foi uma maneira objetiva de Jesus dizer o quanto Deus é importante na vida do ser humano. Logicamente que ele tocou no ponto crucial da divergência que existe nos dias de hoje entre os ateus, seus correlatos e os crédulos de todas as facções religiosas cristãs. Aqueles que de alguma forma negam essa importância, o fazem sempre a partir da autossuficiência que o homem admite ter adquirido ao longo dos estágios da civilização. Portanto, essa autossuficiência não pode ser objeto do que foi conseguido pelo avanço tecnológico dos últimos cinquenta anos, mas algo que já vem sendo trabalhado há alguns séculos, como mostra o contexto do qual foi extraído o texto original das palavras de Jesus.

O contexto original não fala especificamente de ateus, mesmo porque eles não existiam naquela época, mas fala dos que fazem a opção de crer em outro Deus que não aquele da tradição religiosa que guiou o povo de Israel até aquele exato ponto, em que eles acharam que não precisariam mais de Deus e que nenhuma influência mais ele poderia ter nas suas vidas. Essa é a concepção mais precisa do deus que criou o mundo e deu corda suficiente para que ele se bastasse por toda a eternidade. Sinto-me na incômoda obrigação de dizer aos companheiros ateus e aos que se alinham com esse pensamento, que esse deus Jesus também já o havia dispensado e que vocês não são, nem de longe, os pioneiros dessa crença.

A relação que Jesus fez de Deus com o pão, não foi para proclamar a estabilidade da fé ou a certeza quanto ao futuro, o que as religiões que se orientam pelas Escrituras normalmente fazem. Foi justamente o contrário. Foi para falar dos benefícios da presença diária, para evocar uma inteiração premente e para dizer que pão que sacia a fome é tão importante quanto a necessidade de se ter um parâmetro de vida focado em uma consciência mais elevada do que a nossa. Foi para dizer que o homem é e pode muito mais do que a sua pretensa autossuficiência está lhe dizendo.

Os dois contextos falam de libertação. Um da escravidão egípcia, outro da escravidão do pecado. Meu velho pai dizia, logicamente para poucos, caso contrário seria ele sumariamente crucificado por heresia: o grande pecado de Adão foi o de querer ser igual a Deus. Mas ele completava: foi o de querer ser somente igual a Deus, quando Deus esperava muito mais dele.

Einstein dizia que a fé sem a ciência é cega e que a ciência sem a religião é manca. Não teria ele dito isso baseado nas palavras de Jesus quando disse: Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o inferno.

Que inferno maior pode haver do que a escravidão? Tanto a escravidão por meio de quem com as mãos maquina o mal, como a escravidão daquele que mesmo tendo dois olhos sadios, se enxerga sempre sozinho na luta pela sua própria sobrevivência.

Quem não quiser se referir a Deus com os conceitos estabelecidos pelos credos vigentes, que não o faça. O próprio Jesus o chamava intimamente de pai. Paulo foi muito mais ousado que Jesus e da maioria dos que nele crê hoje em dia, quando disse: Aqueles, contudo, pregam a Cristo, por discórdia, insinceramente, julgando suscitar tribulação às minhas cadeias. Todavia, que importa? Uma vez que Cristo, de qualquer modo, está sendo pregado, quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me regozijo, sim, sempre me regozijarei. Contudo, fiquem certos de que para Jesus o Deus que estamos nos referindo é aquele que ele descreveu na oração que nos ensinou: Pai, pão e perdão.

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