Jó e seus amigos, Ilya Repin em 1869 |
Logo nas primeiras páginas do Gênesis o sofrimento entra na
Bíblia: o homem, que no princípio vivia em comunhão com Deus no Jardim de Éden,
é expulso por causa de sua desobediência para a terra de Nod, que significa exílio, ou seja: para onde Caim fosse ele seria sempre um exilado. Exílio, solidão, sofrimento, doença e morte são a herança de castigos pelo
primeiro pecado. Nos tempos primordiais, paradisíacos, o homem não conhecia o
sofrimento, assim como na bem-aventurança final também não haverá mais
sofrimento.
O sofrimento, portanto, não é visto como uma espécie de fardo,
ao qual o homem nunca conseguiu se desvencilhar, mas sim como uma situação de
desordem originada pelo pecado. Por causa desta relação entre o sofrimento e o
pecado constata-se no Primeiro Testamento uma tendência para se interpretar todo
o sofrimento, inclusive o do justo, como um castigo pelo pecado dos
antepassados. Seria um tipo de retribuição nesta terra imposta como uma sanção coletiva, o
que é chamado de Pecado original, mas também pelas faltas pessoais, mesmo as escondidas.
O caráter incompleto e unilateral deste modo de ver foi sendo rechaçado aos
poucos. No entanto, em consequência das deformações dos escatologistas, o
Primeiro Testamento nunca chegou a uma solução satisfatória.
Durante longos séculos Israel teve que lutar contra este
problema, mas não se esquivou diante da questão e aceitou não saber dar uma
solução racionalmente satisfatória. Fortificado pela fé, inclinou
a cabeça ante a sabedoria imperscrutável e o poder de Deus. A pregação
profética, que salientou os elementos éticos na doutrina do Primeiro Testamento
sobre a expiação, deu aos fiéis em Israel alguma compreensão do plano de Deus
na história e o fez aceitar as calamidades que vinham sobre o povo como um
juízo de Deus, um juízo que os conservava, purificava e renovava.
Assim o sofrimento que o justo partilhava como membro do povo de Deus podia ser sentido como uma penitência imposta por Deus e necessária para que não perecesse o povo todo. Essas ideias formam também a base da historiografia dos autores deuteronomistas. Elas estão relacionadas com a esfera jurídica e com concepções pedagógicas: a dor é um elemento necessário na educação. Manifestam-se também na visão nova de Isaías 53 que aponta o sofrimento inocente do Servo de Javé como o único meio de expiação para a culpa do mundo. Na teologia judaica posterior a doutrina que interpreta o sofrimento como expiação ou penitência, exprime-se de muitas maneiras, sendo aplicada também ao cativeiro do próprio povo judaico.
No Segundo Testamento o sofrimento de Jesus foi necessário
que Cristo, o Filho do Homem e Servo de Deus, sofresse e morresse. Este
pensamento é um dos elementos mais essenciais da pregação evangélica sobre
Cristo. João usa a expressão “ser elevado” ou “exaltado”, como um resumo de
toda a sua vida. Conforme os sinóticos, uma parte importante da tarefa de Jesus
como Messias consistia no seu sofrimento e na sua morte de acordo com a vontade
de Deus. Veja-se também o modo como Jesus guardava o segredo de ser ele o
Messias. A semelhança, sugerida na tradição sinótica, entre a vida de Jesus
como a sorte do Servo de Javé em Isaías 53.
A primitiva pregação cristã, tanto para os judeus como para
os gentios, tratou muitas vezes da paixão do Senhor. Verdade é que a
considerava mais como uma provação que Deus lhe impôs, a qual superou de modo
triunfante, mas afirmou também, pelo menos implicitamente, o seu valor
soteriológico.
Foram Paulo, depois o escritor de Hebreus e Pedro que
desenvolveram plenamente a teologia do sofrimento. Paulo fez coincidir sua
doutrina sobre o sofrimento com a sua teologia da cruz. Para ele a cruz, com o
escândalo que causa, está no centro da pregação cristã. A teologia de Paulo
sobre a cruz forma a base do culto cristão e de sua doutrina sobre os
sacramentos: a eucaristia e o batismo. Na paixão e morte, o apóstolo vê a
grande prova do amor de Jesus. Pela paixão e morte de Cristo, o sacrifício
expiatório de sua vida, todos foram resgatados, reconciliados com Deus,
livrados do pecado, da lei, da morte, de todos os poderes cósmicos. Pela sua
paixão e morte Cristo conquistou para nós todos os bens da salvação e pôs o
fundamento da Igreja. Assim a mensagem da cruz, que não esconde nada das
humilhações do Messias padecente, é ao mesmo tempo uma mensagem de ressurreição
e vida.
Em Hebreus 2.28, 9.26 e 13.12, como também em l
Pedro 2.21 e 4.1 se servem do verbo náoxsiv
quando fazem referência ao fim da vida de Jesus, em oposição a João que usa o
verbo ànoOvrioxeiv, contudo, ambos os
verbos referem-se mais à morte de Jesus do que propriamente à paixão que a precedeu,
a qual, no restante da Bíblia nunca é isolada da morte do Senhor, como vemos em
Marcos 8.31, que diz: Então, começou ele
a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do Homem sofresse muitas coisas,
fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas,
fosse morto e que, depois de três dias, ressuscitasse. Vemos também que os
Pais Apostólicos continuaram fiéis a esse modo de falar: Crucifixus etiam pro nobis sub Pontio Pilato, passus et
sepultus est (foi crucificado sob Pôncio Pilatos, morto e sepultado).
O sofrimento na vida do cristão deve ser sempre olhado
através desse prisma. Na perspectiva de Jesus, particularmente nas narrativas
sobre a vida dos discípulos há como um caminho cheio de sofrimentos: João 15.20
- Lembrai-vos da palavra que eu vos
disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também
perseguirão a vós outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a
vossa. Jesus, porém, nunca usa o verbo náauy,
como faz o Segundo Testamento em outros textos, como em Apocalipse 2.10: Não temas as coisas que tens de sofrer. Eis
que o diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós, para serdes postos à
prova, e tereis tribulação de dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a
coroa da vida.
Segundo Paulo, a vida do cristão é uma tensão entre dois polos:
morrer e viver com Cristo. O sofrimento não é privilégio do apóstolo ou de determinados
cristãos, mas pertence à própria essência da vida cristã; é uma grande graça,
superior até mesmo à própria graça da fé: Porque
vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes
nele. Por isso que Paulo, sem medo de se enganar, ousa predizer provações
às suas comunidades cristãs. Para ele o sofrimento não é uma coisa que o
cristão sofre passivamente, mas antes uma luta ativa, viril, pela causa de
Cristo. Por isso este apóstolo não se envergonha dos seus sofrimentos e, longe
de ver seu ministério desanimar, ele vê nas suas muitas privações e provações e
nas perseguições contra os cristãos, um motivo de alegria, uma fonte de
consolação, um autêntico sinal de salvação e um penhor no juízo de Deus: E que em nada estais intimidados pelos
adversários. Pois o que é para eles prova evidente de perdição é, para vós
outros, de salvação, e isto da parte de Deus.
Tudo o que o cristão tiver de sofrer neste mundo, não é nada
em comparação com a glória vindoura, pois o próprio Cristo entrou na sua glória
através de seu sofrimento. Ideias análogas são elaboradas mais profundamente na
primeira carta de Pedro, cujo autor se apresenta como “testemunha da paixão de
Cristo”: Rogo, pois, aos presbíteros que
há entre vós, eu, presbítero como eles, e testemunha dos sofrimentos de Cristo,
e ainda coparticipante da glória que há de ser revelada.
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