Jesus comendo com os discípulos, Paolo Veronese em 1580 |
Mas ele lhes
respondeu: Nunca lestes o que fez Davi, quando se viu em necessidade e teve
fome, ele e os seus companheiros? Como entrou na Casa de Deus, no tempo do sumo
sacerdote Abiatar, e comeu os pães da proposição, os quais não é lícito comer,
senão aos sacerdotes, e deu também aos que estavam com ele? Marcos 2.25s
Machado de Assis, contrariando um ditado popular que até hoje
é muito repetido e por conta dos muitos escândalos políticos e financeiros, está sempre em evidência, disse: A
ocasião não faz o ladrão, propicia o roubo. O ladrão já nasce feito. Se
tentarmos trazer isso para o contexto do pensamento cristão teríamos que
concluir que não é a ocasião que faz o pecador, pois já nascemos pecadores. A ocasião
propicia a vitória do pecado sobre nós. Por mais lógico que possa parecer, isso
ainda não explicaria a realidade do evangelho diante das circunstâncias da
vida, pois este é um preceito do direito legal e o evangelho não se pauta por
ele e sim pela lei do amor.
No episódio bíblico narrado por Jesus ilustra esse diálogo de ânimos
alterados que ele manteve com os escribas e fariseus. Qualquer um de nós
intuiria que os homens de Davi ao comerem, sem permissão, as espigas de milho da
plantação de outra pessoa. Com a visão atualizada dos fatos diríamos que eles saquearam
um supermercado local simplesmente porque estavam com fome e isso não é
atenuante suficiente para tal crime, conforme está previsto na lei. Sob todos os aspectos, o
consenso nos faria concluir também que eles cometeram pecado contra o oitavo
Mandamento, que diz fria e literalmente: Não
furtarás.
Na realidade, Jesus evoca um fato de extrema gravidade para
confrontar uma atitude, que embora fosse relevante, constituía-se em uma falta
muito menos grave, mas que lhe estava sendo proposta por aqueles ilustres
cidadãos de Israel: Os seus discípulos não jejuam? Em outra ocasião, o gerador
da contenda era um fato menos relevante ainda: Mateus 15.2 - Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois
não lavam as mãos, quando comem. Na tradição contemporânea equivaleria
perguntar: Você não faz oração antes de comer?
Penso que podemos resumir tudo isso em uma denúncia feita
por Jesus a esse tipo de pessoa que costuma cobrar essas coisas: Vocês coam um mosquito, mas engolem um
camelo. E eu imagino que ele tenha dito isso para denunciar várias
situações, tais como:
O excessivo zelo pela tradição, que não leva em conta
cultura, economia, região e muito menos circunstâncias.
Pessoas que na incapacidade de realizar a vontade de Deus,
tentam a todo custo fazer com que se priorizem os valores humanos acima dela.
A relevância dos atos exteriores sobre as atitudes sinceras que muitas vezes são as únicas possíveis naquele justo momento.
A supervalorização de determinados atalhos que na ânsia de obtenção
de resultados imediatos traçamos sem nos precavermos conta os efeitos
colaterais.
A necessidade de autoafirmação que faz com que minimizemos os
argumentos dos outros lançando mão de recursos irrelevantes ou mesmo com injúrias.
Não sei quanto a vocês, mas eu me vejo por inteiro em todos
esses itens e em mais alguns que não foram aqui mencionados. Na realidade, eu sou
mesmo essa pessoa que os versos do poeta supracitado revelaram tão
detalhadamente:
Para que
queres tu mais alguns instantes de vida?
Para devorares
e seres devorado depois?
Não estás
farto do espetáculo e da luta?
Conheces de
sobejo tudo o que eu te dei
de menos
torpe ou menos aflitivo: o alvo do dia,
a melancolia
da tarde, a quietação da noite,
os aspectos
da terra, o sono, enfim,
o maior
benefício de minhas mãos.
Que mais
queres tu, sublime idiota?
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