Sara, a mulher de Abraão

Abraão expulsa Hagar e Ismael, II Guercino
Trecho do livro Mulher, grande é a tua fé escrito por João Wesley Dornellas em 2006.
Os comentaristas bíblicos não dão muita importância à pessoa de Sara, a não ser para dizer que era a mulher de Abraão. Nas poucas vezes em que aparece especialmente em alguns capítulos do livro de Gênesis, muito pouca coisa se sabe dela. Era a mulher de Abraão e, parece, sua meia irmã, isto é, seu pai também era o pai de Abraão.

Também se sabe, pela Bíblia, especialmente no capítulo 12 de Gênesis, que era muito bonita. Razão pela qual, ao entrar no Egito, Abraão recomenda a Sarai, para proteção dele, que ela não informasse a condição e esposa, mas de irmã. Isto gerou, por parte do Faraó, a vontade de tê-la como mulher, levando-a para sua casa. Em virtude disto, Abraão foi muito bem tratado no Egito. Quando foi descoberto, em virtude de pragas que caíram sobre ele, que ela era esposa de Abraão, o Faraó lhe devolve Sarai e manda que todos saiam do Egito. Episódio parecido ocorre mais tarde em Gerar. Ao sabê-la irmã de Abraão, Abimeleque, o rei de Gerar, mandou buscá-la. Outra vez revelada a verdade, Abrão foi instado a deixar o lugar. Por duas vezes, portanto, quase que Sarai, apesar de esposa de Abraão, acaba caindo em mãos estranhas.

Deus havia feito uma promessa a Abraão, de que em sua descendência seriam benditas todas as nações da terra. Só que Sara, por ser estéril, não dava sequer um filho a Abraão. Decidiu ela então, como se precisasse, resolver, ela mesma, a promessa ainda não cumprida por Deus. No versículo 2 de Gênesis 16, ela diz ao marido que o Senhor a tem “impedido” de dar à luz filhos. Assim, oferece sua serva egípcia Hagar para que, através dela, fosse permitido a Deus cumprir sua promessa. Assim, nasceu Ismael. Isto não constituiu nenhuma solução, mas, ao contrário, um grande problema. De início, por ter dado um filho a Abraão, Hagar, como seria muito natural na luta pelo poder, começou a fazer pouco de sua senhora. Ela tinha o grande trunfo de ter dado um filho varão a Abraão.

Esse não era, contudo, o plano de Deus. Assim, Deus promete a Abraão que sua esposa Sarai, cujo nome Ele mudou para Sara, ficaria grávida e lhe daria um filho, que se chamaria Isaque. Ele, e não Ismael, seria o filho da promessa. Mostrando Abraão preocupação com seu filho Ismael, Deus o tranquiliza dizendo que ele também seria abençoado e pai de uma grande nação, reforçando, ao mesmo tempo, que a Sua aliança seria estabelecida com Isaque, filho de Sara. A promessa é realizada e, mais tarde, quando o filho da escrava caçoava de seu pequeno irmão Isaque, Sara intervém e pede ao marido que Hagar e seu filho fossem expulsos dali, dizendo “porque o filho dessa escrava não será herdeiro com Isaque, meu filho”. Hagar e Ismael saíram errantes pelo deserto de Berseba. Os dois irmãos só se viram novamente no sepultamento do pai. Tudo o que foi dito acima justifica, sem dúvida, a pouca importância que a Bíblia e os seus comentaristas dão à figura de Sara, que era certamente uma mulher rancorosa e com muitos defeitos.

Voltemos, no entanto, a promessa de que Deus lhe permitira ficar grávida aos 90 anos de idade. É justamente nesse episódio que se manifesta o caráter e a personalidade de Sara. A princípio, ela duvidou e riu da situação para o próprio Deus e este chegou a perguntar a Abraão o porquê do riso. É preciso, agora, fazer um intervalo para dizer que os fatos até agora narrados foram transmitidos oralmente de pais para filhos e destes para os netos durante mais de 500 anos, quando a Bíblia começou a ser escrita. É realmente um milagre a narrativa tão coerente da Bíblia, cujos fatos foram retransmitidos de maneira tão precária. Havia, é claro, a recomendação de Deus feita em Deuteronômio, capítulo 6, versículos 6 a 9: “Estas palavras que hoje te ordeno, estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, falarás delas assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te e ao levantar-te. Também a atarás como sinal na tua mão e te serão como frontal entre teus olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa, e nas tuas portas”. E parece que elas foram muito bem seguidas.

Relembrando Sara que ela e Abraão eram velhos, avançados em idade e que já lhe havia cessado o “costume das mulheres”, expressão poética para definir a menstruação, ela riu-se, pois, no seu íntimo, dizia para consigo mesma: “depois de velha, e velho também o meu senhor, terei ainda prazer?”. O que estava no seu íntimo, os sentimentos profundos de sua alma sofrida, acabaram sendo repartidos com alguém, que o texto bíblico não identifica, que foram transmitidos, no decorrer de mais de quatro séculos, por pais a filhos e por filhos a netos, até que fossem eternizados no texto definitivo da Bíblia. É essa pérola do pensamento íntimo de Sara que a faz ser uma grande mulher, digna das maiores homenagens, especialmente no Dia Internacional da Mulher. Porque ela foi uma grande mulher. Para Adão e Eva, a ordem de Deus era apenas “crescer e se multiplicar, ser uma só carne”. Para Sara, é muito mais do que isto. O “crescer e multiplicar” passa a ter um novo significado que acaba caracterizando a espécie humana, o amor – espiritual e também físico – entre um homem e uma mulher. Pela primeira vez na Bíblia, fala-se do prazer que caracteriza as relações homem-mulher. Ele foi criado por Deus mas, até hoje, parece que se tem vergonha dele. É Sara quem lhe dá a relevância máxima na Bíblia. Os homens, parece que em todo o decorrer da história humana, foram quase sempre machistas e egoístas, nunca dando muita bola para a satisfação da mulher.

Um filho não se gera somente com a união no útero de um espermatozoide e um óvulo, que se transformam em ovo. Não! Mil vezes não! Isto é coisa só para animais ou pessoas que se comportam como se fossem. É muito mais do que isto. Um filho tem que ser gerado por amor, com desejo e prazer. Com romantismo. Somente assim, por serem desejados, podem ser amados e bem criados. A Bíblia não revela a resposta à indagação de Sara mas o sucesso de tudo nos faz crer, sem sombra de dúvidas, que ela é positiva. Numa época mercantilizada como a de hoje, de mulheres que se transformam em objetos ou são assim transformadas pelos homens, a lição de Sara é de uma verdadeira humanista, um ser humano integral, que a absolve, pelas lições que o seu pensamento mais íntimo revela, de tudo o que possa ter feito de errado em sua vida. Mais do que humanista, no entanto, podemos dizer que a visão íntima de Sara é humanizante. O de que o mundo necessita é de seres humanos que sejam realmente humanizantes, que ajudem a melhorar esse nosso pobre planeta.

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