Não te esquecerei jamais

Heros, O Dilúvio de Antonio Carracci (1583-1618) 

Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca. Isaías 49,8

Experiências trágicas como a do tsunami que devastou o Japão há um ano têm criado justas oportunidades para pessoas repetirem aquilo que os estudiosos chamam de “desabafo joanino”. O evangelista resumiu todo a sua indignação e pesar pela terrível perseguição que o Império Romano infligia à sua igreja em uma expressão que, contraditória a tudo mais que deixou escrito, o marcou irremediavelmente como pessimista. Disse ele tomando pela dor da tragédia: O mundo jaz no maligno

Ainda que racionalmente não façamos coro com seu desabafo, temos que admitir que quando a realidade nos assalta com os seus porquês ficamos tão atônitos que estas palavras imediatamente estalam na ponta da língua, e por muito pouco não são liberadas. 


Não tenho, e nem quero ter, um conhecimento profundo das causas que resultaram em algumas tragédias naturais, como essa do Japão em particular. Porém, algumas tantas outras que ocorreram ou que estão prestes a ocorrer, não tenho o menor receio em colocar a maldade e o egoísmo humanos como as únicas origens. Como por exemplo, as pessoas que expõem suas vidas diariamente a calamidades por morarem em locais de risco sob a justificativa de não terem para onde ir, para não falarmos daquelas que vivem, trabalham ou estudam em locais de alta criminalidade. Não creio que este seja o caso dos locais atingidos pelo tsunami. No Japão pessoas hospedadas em hotéis de luxo também sofreram perdas.

Uma coisa eu aprendi com meu mestre Boff: De nada adianta tratarmos o mundo em que vivemos de maneira tão predatória e contabilizarmos vidas humanas como perdas aceitáveis, para depois suplicarmos a Deus que nos livre de todas as consequências desse aviltamento. Isso nada mais é do que tentar colocar Deus no mesmo patamar dos já tão esquecidos anjos da guarda. Aqueles seres angelicais de quem se valiam os aflitos. Aquelas mesmas que serviam para tirar do sufoco, que tinham uma responsabilidade sem limites, sem, contudo, exercer sobre nenhuma autoridade ou voz de comando.

Talvez seja por este motivo que não conseguimos enxergar Jó esperneando na sua angústia, e injustamente o laureamos com o título de campeão bíblico da resignação. Esquecemos também que seus “amigos piedosos” foram severamente advertidos por Deus: Tendo o Senhor falado estas palavras a Jó, o Senhor disse também a Elifaz, o temanita: A minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Job 42.7 Quanto mais detalhadament atentarmos sobre a revolta de Jó, mais teremos que admitir que João tinha total razão em reclamar, não se conformar com seu estado e ser pessimista com o futuro da sua igreja. Assim como Jó, João também levou um tempo enorme para entender os desígnios Deus na profundidade.

Bem sabemos que última fronteira da dor antes do desabafo é a pergunta que indistintamente todos fazemos: O que eu fiz para merecer tamanha desgraça? Não é de modo algum uma pergunta do nosso tempo, os discípulos de Jesus a fizeram, quando o questionaram acerca da origem da cegueira de um homem: Quem pecou, ele ou seus pais? Jesus, contudo, responde de forma estranha: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus. Logicamente que ninguém vai admitir que Deus possa ter usado as calamidades naturais, como o tsunami, com o propósito de manifestar a sua glória. Sabemos que esse é o tributo cobrado às pessoas que moram em locais onde avanços prováveis das marés deveriam ser mais bem avaliados e considerados.

Nas palavras de Isaías nos deparamos com a importância que Deus dá ao afligido. Sem querer discutir os motivos do sofrimento do seu povo, o profeta apresenta um Deus pronto a reconstruir uma aliança que foi quebrada pela maldade humana. Comparado ao sentimento materno, o cuidado de Deus é ainda mais presente e eficaz. E esse cuidado está sendo celebrado no Japão de hoje através da gratidão que os nossos irmãos orientais manifestam com aqueles que os socorreram.

Alguém disse: A obrigação da humanidade de reduzir a injustiça na Terra está sendo expressa pela explosão de generosidade que refuta o cinismo do ateísmo. A explosão de solidariedade, generosidade e de compaixão que o restante do mundo tem demonstrado com o infortúnio alheio, tem calado a boca dos mais céticos e balançado as estruturas dos mais incrédulos. O que por sua vez tem teimosamente reiterado uma fé cada vez maior em um Deus de amor, que além de criador, é mantenedor da vida e consolador em todas as circunstâncias. Deus tem usado as calamidades para manifesta a sua glória, sim, mas fazendo despertar no coração do homem moderno um amor incontido por pessoas que estes jamais supunham ter em sua conta.

A missão do cristianismo não é pregar um mundo sem tragédias e sem violência, isso seria o Reino de Deus. Sua função, enquanto esse reino não chega, é de dizer que Deus se importa e que sofre junto. Stanley Jones dizia: A ideia que a fé cristã oferece uma fuga ao sofrimento, é completamente estranha a essa fé. O destino nos lança, inevitavelmente, um punhal. Ninguém escapa. Se o segurarmos pela lâmina, nos feriremos. Mas se o segurarmos pelo cabo, poderemos usá-lo como instrumento de defesa. Quando a vida colocou uma cruz diante de Cristo, ele tomou o que de pior podia lhe acontecer e transformou no que de melhor poderia nos ocorrer.


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