Escândalo e loucura

Por que os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, pregamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura. I Coríntios 1.22-24 

Extração da Pedra da Loucura, Hieronymus Bosch
É impressionante como estas duas palavras, que parecem caminhar juntas, e juntas também perderam o seu significado. Hoje quando falamos escândalo e loucura parece que ninguém liga muito nem para uma nem para outra. Como brasileiros já nos acostumamos a limitar a perplexidade sobre um escândalo apenas e tão somente até o surgimento de outro escândalo, este é o prazo máximo admitido para que um escândalo permaneça na pauta do dia. Aquilo que nos tempos bíblicos marcava indelevelmente uma pessoa a ponto dela se sentir banida do clã ou mesmo da região onde morava, hoje é mais um assunto nas mesas de botequim. A palavra perdeu completamente o seu sentido, uma vez que a má conduta não mais provoca indignação nem revolta, traduzindo hoje uma ideia mais próxima do inevitável, do corriqueiro e do cômico.

O que dizer da palavra loucura então? Diferentemente de antes, quando o surgiam os primeiros sinais, já se abriam imediatamente as portas do exílio nos porões dos manicômios. Hoje, contudo, parece que ela está sendo apreciada em todos os aspectos da vida humana, quer nas artes, nos costumes ou nos pronunciamentos. A máxima de que quanto mais louco mais atrativo, é tão verdadeira que a sedução pelo bizarro já extrapolou o meio artístico e as classes altas, onde este tipo de excentricidade era comum, e encontrou um solo fértil nas celebrações e rituais dos anteriormente solenes cultos cristãos. Parece que tudo aquilo que, aos olhos do consenso é mais esdrúxulo e mais esquisito, é justamente o que serve para se aplicar ao culto moderno.

Contudo, um olhar mais atento e uma análise mais detalhada farão rasgar o véu e fazer cair a cortina deste cenário. Quando se verifica que tal comportamento não possui características irracionais ou inconsequentes, mas ações premeditadas e muito bem elaboradas. Vê-se também que ao final da sua execução elas se tornaram propícias e convenientes.

A primeira conclusão que se pode tirar desta análise é que tanto o ato de loucura como a promoção do escândalo têm seus riscos previamente calculados. Tudo é muito bem estudado, a estratégia muito bem traçada para que no final o resultado seja positivo e angarie audiência, prestígio, dinheiro e porque não dizer até alguns votos, quando a questão envolve disputa eleitoral. Tudo mais pode ficar de lado, desde que os fins possam ser alcançados.

Outra dedução resultante: ninguém produz um escândalo ou comete um ato de loucura sozinho. Por trás de cada escândalo e de cada loucura existe uma corporação de profissionais que não somente os elabora, cria e aperfeiçoa, mas que também planeja cuidadosamente a sequência na qual serão apresentados. Então a pergunta é: por que o mundo não cria mais loucos ou não produz mais escândalos como antigamente? Sim, porque antes as pessoas perdiam financeiramente, e moralmente ficavam envergonhadas, quando não eram socialmente banidas. Mas hoje lucram, são prestigiadas e até viram celebridades. O que mudou tanto no mundo que nos seduz a pensar que as denúncias feitas por Paulo nos versículos acima, passaram a justificar tudo aquilo que está acontecendo hoje?

Esta é uma imagem aparente. Paulo de forma alguma aprovaria este gênero de escândalos, como também reprimiria severamente tais atos de loucura, como fez através das suas epístolas dirigidas aos coríntios e aos efésios. No texto acima ele fala de uma da face altruística e romântica do escândalo e de uma loucura que se traduz em coragem para protagonizar mudanças. Algo tão acima da compreensão humana, que nem mesmo ele entendia a razão ou possuía uma explicação convincente. Falava de uma loucura cujo resultado era o risco iminente na vergonhosa cruz, e de um escândalo cuja probabilidade era a pena infamante da crucificação, e é aí onde toda a diferença se estabelece. Não houve manipulação de resultados e não existiram atenuantes tanto para Jesus como para os que lhe eram próximos, e as consequências foram as piores possíveis.  

Assim como aconteceu na vida do apóstolo, os desafios que o evangelho nos leva a enfrentar, deixa em nós a sensação de perda e indagação, porque todo o esforço é radicalmente oposto ao que mundo valoriza. Por que, após ter cumprido todas as tarefas que me foram confiadas, mesmo que fosse preciso superar os limites da natureza humana, ainda tenho que dizer de mim mesmo: não passo de um servo infiel e inútil? Por que, quando jejuo com um propósito justo, passo horas em comunhão com Deus ou sou solidário ao desafortunado, não posso trombetear meus feitos em praça pública, como todo mundo faz? Por que devo aceitar que as prostitutas e os socialmente banidos me precedam na glória celeste, quando a mim é exigida a rigidez da disciplina cristã? Por que tenho que esconder da mão esquerda o que a minha mão direita faz? Por que tenho a obrigação de favorecer os que me perseguem e orar pelos que querem me destruir, para que fiquem mais fortes ainda e consigam mais rapidamente os seus intentos? Por que devo convidar mendigos e aleijados para a minha festa em lugar dos homens e mulheres de bem? Por que devo sempre ter ao meu lado os pobres. Por que não posso me valer dos meus carismas para ir atrás de glória e de prestígio? Por que é preciso cogitar da possibilidade te ter que arrancar um olho ou cortar uma das mãos para entrar no Reino? Isto é que é loucura. Isto sim é escândalo sob todos os pontos de vista humanos.

Muito embora o Cristianismo tenha sido apresentado de forma a ser radicalmente inovador, o método do qual se utiliza para alcançar as pessoas sempre foi a milenar arte da pregação. Ao detectar esta forte ligação da pregação cristã com a mensagem profética do passado, Paulo faz a mais absurda de todas as suas declarações: aprouve Deus salvar os que creem pela loucura da pregação. E ele não encerra simplesmente assim, mas reafirma que isso se dá pela pregação do maior escândalo de todos os tempos: anunciar um Deus que se deixou ser humilhado, torturado e suportou sobre si a mais difamante de todas as execuções.

A velha e fiel pregação, a mesma que coloca filho contra pai e pai contra filho, a que separa medulas e juntas, a que faz de nós lixo do mundo e escória do universo. Em razão deste fato, não existe qualquer possibilidade de alguém sair satisfeito ou orgulhoso de um sermão quando ele é fiel à sua índole profética. Um sermão só pode nos deixar apenas duas escolhas: converter-se ou indignar-se. Resta para o ouvinte aceitar submisso, arrepender-se ou chutar o balde. Pois é esta mensagem que desafia a nossa justiça para que ela seja a mais justa, ainda que vá de encontro às fórmulas estabelecidas do Direito; a fazer o nosso julgamento sempre tardio, ainda que as evidências sejam as mais claras; a que o nosso perdão seja uma arma pronta e ao alcance.

Paulo vem nos dizer que a cruz é a alavanca para subverter a ordem, para inverter valores, para andar na contramão, para transtornar o mundo. É assim que vive o cristão, não de pão ou dos elementos que se constituem nas necessidades básicas da vida, mas desta palavra que, segundo a nossa fé, procede da boca de Deus. É exatamente por isso que necessitamos de conversões constantes, pois ela nos coloca a todos no mesmo patamar, desde o cristão mais letrado ao mais recém-chegado na fé. Perder para ganhar é uma tática que escapa à lógica, porque não são, como na vida secular, atos contínuos. Não se trata de perder agora para ganhar mais depois. Trata-se sim de perder aqui e agora, para poder viver na esperança.

Na cruz, Deus somente perdeu. Apenas alguns visionários a enxergaram como vitória, a ressurreição foi testemunhada por poucos. A cruz continua tendo o mesmo significado: um símbolo de derrota. Para os que não creem, a cruz continua a ser escândalo e loucura, mas para os que são chamados a escandalizar a ordem estabelecida e ser louco ante lógica excludente, esses são os requisitos básicos para a entrada no Reino. De modo inverso, a saúde mental e o consenso podem nos levar a ficar de fora dele. 

Por tudo que foi dito, podemos firmar com toda certeza de que a mensagem cristã se contrapõe ao nosso mundo e à sua lógica. A razão humana jamais contabilizará duas moedinhas como uma oferta maior, ou justificará o desperdício de todo um caríssimo vidro de perfume, onde e quando apenas duas gotas são suficientes, pois essa é a lógica da graça.

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