Damasco

A conversão de Saulo, Nicolas Bernard Lépicié
Embora também sirva para identificar uma deliciosa fruta, a palavra Damasco é uma palavra que tem provocado um certo contragosto no entendimento dos estudiosos da vida do apóstolo Paulo. O que parece ser aos olhos do leigo simplesmente o centro do poder do Império Sírio e hoje a capital mais antiga do mundo, tem se mostrado ser um intrigante enigma para quem tenta se aprofundar um pouco mais nas entrelinhas da Bíblia.

Muito embora tenhamos uma biografia minuciosamente traçada por Lucas, esta tem produzido mais indagações que respostas sobre o referido assunto, como por exemplo: Por que uma escolta tão grande para vigiar um único prisioneiro? Com que autoridade Paulo saiu de Jerusalém para prender e extraditar pessoas em outra província do império romano sobre a qual o Sinédrio não tinha poder? Que motivos levaram tantas pessoas a odiá-lo e querer vê-lo morto? Em meio a tantos pontos inconclusivos e ainda em suspenso, uma verdade é evidente: Damasco é o lugar onde Paulo foi buscar lã e saiu tosquiado.

Não sei de onde surgiu a expressão “cair do cavalo”, mas tem muito a ver com a significativa mudança do apóstolo que teve início justamente na estrada de Damasco. Muito além de ser um ponto na geografia bíblica, Damasco é o grande divisor de águas na vida daquele que levou a mensagem cristã para fora dos estreitos limites da fé judaica. Diante deste fato, todos os enigmas citados anteriormente empalidecem e a grande questão passa a ser esta: Qual o real significado Damasco na transformação que levou o rabino Saulo a se tornar o apóstolo Paulo?

Para chamarmos simplesmente de conversão esta extremada mudança, temos que estabelecer paralelos obrigatórios entre esta e outras tantas conversões ao longo da História da Salvação. Não foi, como em Santo Agostinho, a conversão de um devasso em um rigoroso observador da moral cristã, nem como em Lutero, na busca pela razão da existência, não foi o resgate de uma alma escrava do pecado muito menos o reencontro da ovelha que vagava perdida. Em Paulo, a conversão, que segue caminho inverso, transforma o jovem e promissor orgulho de uma nação em um condenado jurado de anátema, o pior sentido da excomunhão e do desprezo.

Imagino não poder haver complicação maior na cabeça de uma pessoa do que para quem de repente sai do mais alto prestígio de uma religião milenar para ingressar em uma fé incipiente, onde só faz provocar medo e gerar desconfiança. E para potencializar todas as questões, o palco desta mudança não foi um templo como o de Jerusalém, a casa de um consagrado bispo ou mesmo o clímax de um programa elaborado de evangelização. Foram os muros de uma cidade inexpressiva para o contexto judaico-cristão. Se quisermos condensar a colação de grau da carreira rabínica de Paulo com a sua maior experiência de vida e com todas as frustrações de quem tinha tudo para achar que não valia a pena, temos que fazê-lo sob um único rótulo: Damasco.

Paulo representa simplesmente o evangelho pregado ao contrário. Aquele que é chamado para sofrer, para perder, para ser odiado e, usando uma gíria atual, para ralar muito sem receber qualquer recompensa minimamente palpável aos olhos humanos. O que será que Damasco fez na vida deste homem para que aceitasse assumir esta carga sobre si? Que valores encerram os acontecimentos ocorridos em Damasco para a igreja de hoje? Alguns aspectos na conversão de Paulo podem nos ajudar a responder.

1º - O dom da paciência.
Opostamente à sua disposição de mostrar resultados como quando era um rabino a serviço do Sinédrio, Deus fez ver a Paulo a eficácia da paciência contra o imediatismo. Foi essa a sua grande arma contra o desvio da fé de igrejas como Corinto e Éfeso. Cartas, visitas, enviados e tudo o que foi preciso ser feito para que os coríntios e efésios abraçassem a verdadeira fé foi feito. Embora mal intencionados enxerguem discriminação e machismo nas suas cartas, a interpretação fiel do contexto credita a ele uma conduta paternal e amorosa. É aos coríntios que afirma mais de uma vez que a paciência é uma das características marcantes do amor. Este mesmo amor paciente que não recebera dos cristãos primitivos, lhe foi ensinado a duras penas na sua estada em Damasco, para aceitar submisso à catequese de Ananias como posteriormente, colocar-se debaixo da liderança de Barnabé. Como é difícil este tipo de aprendizado, aprender a ter pelos outros um sentimento que é negado a si mesmo por todos: judeus, romanos e cristãos. Uma diferença estanque entre Paulo e os demais apóstolos é que mesmo depois de escorraçado ou agredido, nunca pediu que descesse fogo do céu para consumir seus agressores. Pelo contrário, sempre teve por opção o ser consumido pelo fogo para que estes se salvassem.

2º - A humildade que vem da fé.
Uma das heranças inúteis recebidas do farisaísmo judaico é o orgulho religioso. A pretensão de ser melhor, conhecer todas as coisas e ter a absoluta razão vinda do judaísmo não somente criou raízes como floresceu abundantemente no solo cristão. Este “fermento dos fariseus” do qual Jesus tanto advertira seus discípulos e que contaminou a carreira rabínica de Saulo é hoje a mais flagrante verdade na igreja de Cristo. Não somente pelas palavras do papa Bento XVI, que afirmam ser a sua, a única e verdadeira igreja, como também as visões alucinatórias de líderes evangélicos de menor expressão, que além de se autoproclamarem arautos exclusivos da verdade divina, excluem definitivamente os católicos da fé cristã. O antídoto contra este veneno Paulo recebeu na sua passagem por Damasco. Em Paulo, não somente observamos o respeito pelas pessoas que professavam diferentes religiões, como também a mais fiel aplicação da técnica de evangelização ensinada por Jesus, a doutrinação a partir da realidade do outro. O que temos aqui é outro difícil aprendizado. Ter a convicção de que recebeu a mensagem de fé definitiva e, no entanto, ser humilde o suficiente para se despojar de todo conhecimento para usar a fé alheia como a alavanca para transformação. Os bereanos que o digam. Contrário à tendência de intelectualização, que já podia ser observada no seu tempo, Paulo fundamenta sua mensagem no limite extremo da humilhação, da loucura e da infâmia, a cruz de Cristo.

3º - O sofrer por amor a Cristo.
Não sabemos o quão extensa era a ligação de Paulo com Ananias, mas este foi durante um tempo o único elo entre Paulo e a igreja, entre o apóstolo e aquilo que “recebeu do Senhor”. Ananias foi seu pastor e certamente sabia o quanto seria duro o seu ingresso na fé cristã e não somente isso, conhecia a causa deste sofrimento. Sabia o quanto era preciso que Paulo sofresse por amor a Cristo. Diferentemente do sofrimento causado por uma perda ou por um trauma, os quais somente o tempo cura, o sofrimento por amor a Cristo para instantaneamente quando se nega a Cristo. Diante deste fato, podemos perceber como era árdua a tarefa de pregar um Cristo que liberta, que salva, que redime, que cancela o escrito da dívida e ter que receber sobre si toda a carga negativa da reação dos poderosos opositores desta fé, além do ônus da anunciação de algo tão estranhamente novo. Todas as prisões, todos os açoites, todas as perseguições poderiam ser evitadas com um simples não a Cristo. Foi da obscura Damasco que ecoou o primeiro grito convocando-o à submissão, quando escondido em um cesto, foi traficado como mercadoria para fora de seus muros. Damasco é testemunha da fuga desonrosa e humilhante daquele que há pouco se dirigira para lá com toda autoridade, pompa e poder.  

4º - O dom do serviço gratuito.
Paulo foi o grande nome da fé cristã no primeiro século, um reconhecimento que não obteve através do exercício da liderança à frente de uma grande igreja, mas sim através da obstinada missão de levar o evangelho a todos os recantos do Império Romano abrindo mão de qualquer salário ou benefício financeiro a que um pastor fazia jus. Muito embora seus planos para expansão do evangelho fossem universais, o que se via na prática era a abordagem quase que individual na transmissão da mensagem. Com os judeus, fiz-me judeu, para os gentios fiz-me gentio, para os fracos fiz-me fraco. Fiz-me de tudo para com todos para, a todo custo, ganhar alguns. O ardor do mensageiro nunca esmoreceu diante da exiguidade dos seus ouvintes e nem diante da inexpressividade dos resultados. Como ele mesmo dizia: Faço de tudo para ganhar uns poucos. Talvez este seja o grande paradoxo da fé cristã, raramente poder contemplar o resultado da própria semeadura. Paulo plantou para que Timóteo, Lucas, Apolo, Silas e tantos outros colhessem os frutos. Paulo, mais o que nenhum outro antes ou depois dele, encarnou a itinerância do mandamento “ide e pregai” como a missão suprema de uma vida. Esta forma abnegada de anunciar o evangelho sem ser pesado ao evangelho tem o seu aprendizado em Damasco, na casa de Ananias, que segundo alguns estudiosos, foi onde iniciou de fato no ofício de construtor de tendas, o seu único meio de subsistência durante todo o seu ministério pastoral.

5º - A negação de si mesmo.
Uma palavra na carta aos coríntios é para nós de difícil tradução. A expressão que na nossa língua tem a conotação de algo grandemente desprezível e extremamente vil como o ser lixo do mundo e escória do universo, é a que Paulo usa para designar o valor da carreira apostólica. Paulo coloca a si e aos demais apóstolos como os menos merecedores e os mais descartáveis de todos os cristãos. Tenda de pano, vaso de barro e remador inferior são os ícones escolhidos por ele para identificar os que detinham sobre si os mais elevados graus da hierarquia cristã. Paulo está sendo integralmente fiel ao lava-pés, quando o Mestre ajoelhado transmite a todos os seus seguidores a única e verdadeira forma de serviço. Responsabilidade total, nenhuma honra e nenhum reconhecimento. 

6º - Combati, encerrei, guardei.
Não é por mero acaso que esta declaração resume toda uma trajetória marcada por erros e acertos, realizações e frustrações, maldições e bênçãos. Aquele mesmo que confessara sua incapacidade diante do pecado que agia dentro dele como uma compulsão incontrolável faz deste moto o seu hino vitória. Uma vida vitoriosa que não estava se encerrando em cima de uma cama cercado por seus queridos, mas no fundo de uma masmorra, com data de execução marcada para breve. O hino de vitória com que Paulo motiva Timóteo, não carrega os louros da batalha vencida e sim de uma presença constante no combate. Não diz também que a batalha está terminada, mas confessa que dentro de seu limite humano, fez o que poderia ser feito. O mais importante, preservara a fé que recebera como dom de Deus nas cercanias de Damasco, sob qualquer circunstância durante toda vida.


Esta é Damasco, o ponto exato onde a trajetória de Paulo passou a ter um outro rumo. Assim como foi a Geórgia para Wesley, todos temos um lugar no espaço ou no tempo quando a Palavra de Deus nos fala mais de perto, onde literalmente caímos do cavalo. Esse é um fato inegável e assustador, contudo, o que mais importa. Não é relevante o quanto a história levará para nos fazer justiça. Diz a tradição que Nero, o imperador romano, antes de decapitar Paulo o fez andar de quatro como um cão. Para nos lembrarmos do quanto o Damasco de cada um é fundamental para as nossas vidas, a história fez com que hoje o nome de Paulo déssemos aos nossos filhos e nome de Nero déssemos aos cães.

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