Adão e Eva, Johann Ramboux |
Gramaticalmente quer dizer a primeira boa-nova da salvação: as palavras com que Javé formula o castigo contra a serpente que no paraíso seduziu a mulher ao pecado: Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela; esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar (Gn 3:15). Os antigos padres e todos os exegetas católicos interpretam essas palavras como o primeiro anúncio da salvação, que Cristo trouxe “destruindo as obras do demônio" (1 Jo 3:8).
Para muitos teólogos, o sentido literal dessas palavras prediz até a pessoa do redentor e a imaculada concepção de Maria. É um erro metódico; pois interpreta-se então um texto antigo, não pelo contexto, mas por textos e concepções de vários séculos depois e pela sua realização em Cristo, que nós conhecemos, mas o hagiógrafo não. Para determinar o sentido de Gn 3:15 é preciso não perder de vista os dois adversários e examinar:
1 Quem é a serpente;
2 Quem a descendência da mulher.
A serpente
A serpente não é concebida como puro símbolo da concupiscência ou como disfarce do demônio; pois contra um símbolo ou uma máscara não poderia ser pronunciado um castigo físico. Ela é apresentada, portanto, como um animal real, mas não como um animal comum, nem mesmo como um animal do mundo das fábulas. O autor, que descreveu de modo tão concreto a superioridade do homem sobre os animais (Gn 2.19), não atribuiria a um simples animal uma sabedoria e um conhecimento que o homem não possuísse; aliás, a serpente não é superior aos demais animais por saber falar ou por ser mais inteligente, e sim por conhecer o segredo divino da árvore e por rebelar-se contra Deus. A serpente, portanto, é o animal mágico que dá ao homem conhecimentos superiores e a vida (cf. Nm 21.9), conforme era concebida e venerada no mundo semítico, ou então, uma fera mitológica de natureza antidivina, figura de Satanás.
Ora, a serpente de Gn 3 manifesta-se como inimiga de Deus, por acusá-lo de inveja e de mentira (v4) e do homem porque o engana propositadamente (v 13) e o excita à revolta contra Deus (v4 e seguintes). Não é a serpente que dá ao homem um conhecimento superior, mas o fruto da árvore (v 7,11,22); a serpente apenas conhece as propriedades daquele fruto. A serpente, portanto, não é aqui o “animal da vida”, que dá ao homem a vida e (no modo de pensar do autor) a morte; ela só convida o homem a comer do fruto que causará a morte (2:17; 3:19); a serpente causa diretamente o pecado e só indiretamente a morte e outros castigos pelo pecado (3:16-24). A serpente, portanto, é um poder antidivino que causa desgraças, figura semelhante à serpente de sete cabeças, Leviatã (Is 27:1; Sl 74:12; Job 3:8), que na mitologia fenícia colabora com o deus da seca e da morte, e a Raab, o dragão que foi transpassado por Javé nos primórdios (Is 51:9; Sl 89:10-12; Job 26:12; 9:13; 7:12).
Na Babilônia um dos mais temíveis dos “sete” maus demônios é uma serpente, e entre os satélites de Tiâmat, o caótico oceano primordial, havia terríveis serpentes, aniquiladas por Marduc, quando esmagou sob os pés o pescoço de Tiâmat (Enuma elis 1,131-139; 4,104.128). Aliás, em todo o Oriente Antigo a luta de um deus contra uma serpente ou um dragão é um tema muito espalhado. A serpente, portanto, é muitas vezes no Primeiro Testamento e no Oriente Antigo, um ser demoníaco, antidivino, causador de males; por isso ela aparece em Gn 3 como a tentadora, que excita o homem contra Javé, causando assim a sua perdição; e a própria Sagrada Escritura vê neste animal demoníaco o demônio ou Satanás (Jo 8:44; Ap 12:9; 20:2). Por haver seduzido a mulher ao pecado, a serpente é amaldiçoada por Javé e feita o animal mais desprezível: terá de andar de rastros sobre o ventre (o que ela, na concepção do autor, não fazia antes; no Oriente Antigo as serpentes mitológicas muitas vezes são representadas em posição erguida) e terá de comer pó (Mq 7:17; Is 65:25), como os habitantes dos infernos, e haverá luta entre ela e sua descendência de um lado e a mulher e sua descendência do outro.
A narrativa de Gn 2 quer explicar a origem da morte e dos sofrimentos desta vida, descrevendo, por meio de elementos concretos e pitorescos, oriundos de concepções populares do antigo mundo semítico, como o homem, criado por Javé em estado de amizade com o seu Criador e de perfeita felicidade, se deixou seduzir ao pecado, perdendo por isso esses dons, e sendo castigado com a morte e todos os sofrimentos da atual vida humana Paraíso. (continua)
Fonte Dicionário Enciclopédico da Bíblia. A. Van Den Born.
Fonte Dicionário Enciclopédico da Bíblia. A. Van Den Born.
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