Assumindo responsabilidades III

Crianças mantidas reféns pelo Estado Islâmico
Chegamos, afinal, ao momento verdadeiramente crítico da nossa meditação. Por que o Deus da Bíblia manda matar crianças e velhos durante a conquista de Canaã? É uma pergunta embaraçosa para a qual a resposta deve ser dada com critério e responsabilidade, pois evoca muito mais do que uma simples curiosidade. 

Diz respeito principalmente ao caráter de um Deus que exige para si os atributos de amor, justiça e santidade absolutos. Espero ser tomado de um mínimo de lucidez e clareza para não ser tendencioso, muito menos condescendente, ressalvando de antemão que tenho a mais plena convicção de que o texto sagrado sobrevive incólume a essa e a outras críticas ainda mais contundentes.

O primeiro elemento a ser observado é quanto ao tipo de guerra que a narrativa descreve e que era comum a todas civilizações da Idade do Bronze: o anátema. Esta palavra que hoje se convencionou traduzir por amaldiçoado é bem mais pungente do que este significado herdado. Anatema traduz literalmente a ordem dada em I Sm 15.3: Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes; porém matarás homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos. Dá para perceber logo de saída que não é algo que a mente do século XXI julgue aceitável, mesmo guardados 5.000 anos de diferenças culturais.

Outro elemento que não deve desprezado é o significado da palavra hebraica herem, que está presente em todos os contextos onde a matança generalizada pode ser encontrada na Bíblia. Herem, para os hebreus tem dois significados distintos e que jamais julgaríamos associáveis na nossa língua, pois pode significar tanto destruir quanto dedicar. É importante que se observe não somente o sentido imediato que a palavra assume, como também as suas consequências. Se assimilarmos o termo como dedicar, os elementos em questão se tornariam intocáveis, o que redundaria em interpretação antes de julgamento.

Logicamente que a Bíblia não faz objeções àquilo que não existe. Se ela fala em sacrifício de crianças é porque eles realmente existiam, e eram bem mais frequentes do que podemos imaginar. Não são raras as vezes que as escavações arqueológicas se depararam com grandes quantidades de ossadas de bebês, crianças e adolescentes no Oriente Médio. Fato que sugere que era uma prática comum e que muitas das crianças chacinadas pelos hebreus já estariam antecipadamente condenadas ao sacrifício. Contudo, não quero afirmar aqui que se tratava de um combate de um mal com outro mal. Mas uma das intenções da conquista de Canaã e a desapropriação dos seus habitantes era extirpar as práticas nefastas daqueles povos.

Um elemento importante, e esse diz respeito à lei judaica exclusivamente, era a integridade da sua identidade religiosa. O povo que saiu do Egito onde imperava a idolatria, que vagou quarenta anos pelo deserto para sofrer uma depuração moral e religiosa, e agora estava prestes a se fixar em uma terra predominantemente idolátrica, precisava fazer alguma coisa para que a sua população não se amoldasse aos costumes e religiosidade locais. Como era uma prática comum a erradicação total dos derrotados pelo anátema, podemos concluir que, a despeito de todo horror que nos causa hoje em dia, este era o modus operandi em situações semelhantes.

Deixei por último o elemento que pode não justificar, mas que lança perspectivas futuras a essa prática.

A região da Palestina não era importante apenas pela sua posição estratégica como eixo que dividia as duas regiões que continham as civilizações mais proeminentes da época. Ao Sul o Egito e ao Norte a Babilônia, Assíria, Síria etc. Sua importância capital era o acesso às cidades litorâneas do Mar Mediterrâneo, onde proliferavam todo o tipo de comércio, ideias e religiões. Uma vez instalado às suas margens, cada povo tinha o privilégio de conhecer e se tornar conhecido.

O propósito de Deus ao escolher um povo, e que se esse povo se instalasse justamente naquela região, a qual deu o nome de Terra Prometida, logicamente que não era pelos atributos desse povo, nem mesmo pelas riquezas naturais da região. O intuito se fundamentava no fato de que esse povo servisse como modelo de paz, justiça e convivência harmoniosa com a natureza e com os seus vizinhos: Dt 4.6 - Vocês devem obedecer-lhes e cumpri-los, pois assim os outros povos verão a sabedoria e o discernimento de vocês. Quando eles ouvirem todos estes decretos dirão: De fato esta grande nação é um povo sábio e inteligente”. 

As leis humanitárias do Deuteronômio, se fossem cumpridas, mostrariam ao mundo uma nova realidade, que provaria ser possível resolver as grandes questões sem conflitos, rancores e ressentimentos. Por si só, esta prática evitaria a grande maioria das situações drásticas a que os povos ao longo da história têm experimentado. Por outro lado, o descumprimento de leis tão simples e factíveis, de leis que jamais haviam sido cogitadas ou imaginadas por qualquer outro povo antes dele, de leis que seriam facilmente copiadas, uma vez que aceitas, teria que ter naturalmente consequências desastrosas.

Basta um olhar da nossa geração nos acontecimentos do Oriente Médio para que repensemos a nossa pergunta inicial. Quem de nós, se tivesse o poder de pôr um fim nas atrocidades do Estado Islâmico, nos horrores praticados pelos grupos extremistas da Síria e no governo sanguinário de Bashar al-Assad, não optaria por uma ação de extermínio imediato, com vistas a sobrevivência da maioria que não se sabe como sobrevive, apesar da sua situação oprimida e degradante? Ainda temos também um conceito que John Wesley usou para avaliação de usos e costumes do Povo Chamado Metodista: O que uma geração tolerar, a próxima abraçará. Transferindo a ideia para as páginas do Primeiro Testamento: O que esperar de uma geração que nasce contemplando placidamente o assassinato de inocentes?


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