Palavras fixadas com pregos I

Biblioteca de Alexandria incendiada pelo Bispo Theofilo de Alexandria
Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais dirás: Não tenho neles prazer; […] Antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o cálice de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu. Vaidade de vaidade, diz o Pregador, tudo é correr atrás do vento! Eclesiastes 12.1,6-8

Texto do rev. Luiz Carlos Ramos no Culto in Memoriam do rev. Luciano José de Lima.

O Pregador, além de sábio, ainda ensinou ao povo o conhecimento; e, atentando e esquadrinhando, compôs muitos provérbios. Procurou o Pregador achar palavras agradáveis e escrever com retidão palavras de verdade.

As palavras dos sábios são como aguilhões, e como pregos bem fixados as sentenças compiladas, quando dadas por aquele que é o único Pastor.

Demais, filho meu, atenta: não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne.

De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo ser humano. Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más.

A Biblioteca de Alexandria, idealizada por Alexandre, o Grande, três séculos antes da nossa E.C., foi o maior centro intelectual e cultural da antiguidade de que se tem notícia. Ao longo de 600 anos, chegou a acumular mais de meio milhão de livros. Longe de servir de mero depósito de obras literárias, era, antes, um laboratório de investigação e de produção científica que abrangia as mais vastas áreas do conhecimento: filosofia, medicina, astronomia, literatura, matemática, física, engenharia…

Alexandria era uma cidade portuária construída às margens do Mediterrâneo, na costa norte do Egito, e, conta-se, que todos os navios ou mesmo os viajantes que por lá passavam eram revistados, não em busca de contrabando ou de substâncias ilícitas, mas de livros. Se um livro fosse encontrado, esse era confiscado para a Biblioteca, e o portador devidamente indenizado.

Tal investimento no conhecimento pelo conhecimento — a fundo perdido, portanto —, patrocinado pelo Império Helênico (ou Helenístico), durante a dinastia ptolomaica, resultou em avanços e benefícios inestimáveis para a humanidade.

Por essa época se fizeram os primeiros estudos avançados da anatomia humana por meio da dissecação de cadáveres; se presumiu, pela primeira vez, por meio de cálculos sofisticados, a medida exata da circunferência da Terra (com um erro de meros 8 km), elaborou-se uma teoria coerente do movimento dos planetas, e calculou-se o tempo de duração do ano solar, com um erro insignificante de 6 ou 7 minutos — isso tudo sem dispor de calculadoras científicas, satélites ou GPS.

No entanto, esse alvorecer da ciência e aprofundamento do conhecimento e dos estudos acadêmicos estava com os dias contados. O famigerado Império Romano ia ganhando território sobre o Helênico, não graças à superioridade intelectual, que definitivamente não era o caso, mas à sua truculência — e nisso eram experts. Desde então soube-se que é mais fácil o poder cair nas mãos dos truculentos do que nas dos sábios. Os romanos derrotaram os gregos e assumiram o controle também em Alexandria, isso por volta do ano 30 a.C. Durante uma batalha naval, atearam fogo aos navios que estavam aportados. O incêndio logo se alastrou e como a biblioteca ficava próxima ao porto ela também foi queimada.

O que sobrou não foi muito, e embora os romanos não fossem contra a existência de bibliotecas, não estavam dispostos a investir recursos econômicos nesse tipo de atividade não lucrativa.

Para se ter uma ideia do tipo de gente que assumiu o poder, na ocasião, basta lembrar que, enquanto do outro lado do Atlântico os Maias, os Astecas e Incas, desenvolviam um preciso e sofisticado calendário ao mesmo tempo que construíam cidades com engenharia avançadíssima; e em Alexandria, como já apontamos, estudavam-se as orbitas dos planetas, media-se a circunferência da Terra e definia-se a duração do ano solar, bem como pesquisava-se a cura de inúmeras doenças e faziam-se os primeiros protótipos de robótica… Enquanto isso, em Roma o povo se entretinha no Circo, assistindo às ruidosas corridas de bigas e aplaudindo os gladiadores que se decapitavam mutuamente.

Não bastasse isso, no período pós Constantino (sécs. seguintes ao IV da E.C.), os cristãos que, num processo de conversão inversa ao do Apóstolo dos Gentios, passaram de perseguidos a perseguidores, trataram de impor sobre os povos uma versão intolerante de cristianismo, já completamente distorcida e distanciada daquele de Jesus de Nazaré. Tais cristãos, de triste figura, mandaram queimar, dentre os livros que sobraram da Biblioteca, aquelas obras que de alguma forma discordassem da cosmovisão da Cristandade. Há quem diga que nessa ocasião se perderam para sempre algumas das obras mais importantes da humanidade, entre elas o tratado sobre o riso (a comédia) de Aristóteles. Afinal, se alguém suspeitasse que Deus também ri, isso, de alguma forma, poderia pôr em risco a sobrevivência dos senhores da Cristandade. Bem, o que restou da famosa biblioteca já não era digno desse nome.

O golpe de misericórdia veio com a derrota dos cristãos pelos muçulmanos em 640 da E.C. Infelizmente, os que aí se estabeleceram não eram melhores que os cristãos. Simplesmente mandaram queimar todos os livros restantes, até o último, sob o seguinte argumento: Se esses livros contradizem o Islã e o Corão devem ser destruídos, por serem perigosos, e se os confirmam, também, pois nesse caso são desnecessários.
                                                
Tudo se apresenta ainda mais estarrecedor quando nos damos conta de que não somente os livros foram aniquilados, mas também seus autores, os pesquisadores, os mestres, os sábios, de sucessivas gerações, foram sumária e impiedosamente perseguidos, torturados, trucidados.

Perguntamo-nos, então, como pode ser isso: tanto saber, tanto conhecimento, tanta sabedoria desaparecer assim, sem mais…? Tornar-se pó, virar cinza?… (continua)

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