Biblioteca de Alaxandria, ilistração do livro Cosmos, de Carl Sagan |
Perguntamo-nos, então, como pode ser isso: tanto saber,
tanto conhecimento, tanta sabedoria desaparecer assim, sem mais…? Tornar-se pó,
virar cinza?…
Depositar as cinzas do reverendo Luciano no jardim da
Biblioteca da Faculdade de Teologia na Universidade Metodista, neste ato
memorial, me faz hoje refletir muito sobre todas essas coisas. Talvez não tenha
havido nenhum aluno desta escola que tenha amado e frequentado mais a
Biblioteca do que ele. O Luciano, por si só, já era uma biblioteca completa.
Fico imaginando como teria sido se ele tivesse vivido em Alexandria, na época
áurea dos Ptolomeus, e frequentado os laboratórios de experimentação e
investigação daquela monumental biblioteca…
O Luciano tinha em comum com os grandes sábios da
antiguidade que frequentaram todas aquelas admiráveis bibliotecas, assim
como com o autor do livro do Eclesiastes, a inquietude das mentes
inquiridoras, sempre com suas perguntas existenciais e sua paixão pelo
conhecimento. Mas, diferente daquele pregador bíblico — que só viria a
compreender o grande princípio da vida na velhice: “Lembra-te do teu Criador
nos dias da tua mocidade… e teme a Deus e guarda os seus mandamentos” (Ec 12.1
e 13) —, sim, diferente daquele, desde a mais tenra juventude o Luciano foi
consciente do grande amor do Criador por ele e por toda a humanidade e, por
isso mesmo, consagrou-se e comprometeu-se, de maneira incansável, com o novo
mundo de Deus.
Suponho no entanto, pelo que bem conheci do Luciano, que ele
não concordaria com a ideia do Qohélet
de que “não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne”.
Pois já faz tempo que descobrimos, e sobre isso conversamos várias vezes, que
Deus é um inveterado bibliófilo. Para nos revelar sua vontade, providenciou não
um livro, mas toda uma biblioteca: Bíblia é o termo grego pra designar o plural
de “livro”.
Em sua aula magistral, ministrada no dia da primeira Páscoa
cristã a dois alu(m)nos peregrinos de Emaús, o Mestre caminhante fundamentou
sua argumentação com uma ampla referência bibliográfica de pelo menos
36 títulos, compilados na Bíblia Hebraica, que estão organizados em três
seções: a Torah, também chamada de livros da Lei de Moisés ou Pentateuco, os
Nevihim ou livros Proféticos, e os Ketouvim
ou Escritos poéticos. Como se vê, a lição discorreu sobre Direito, Política e
Poética.
Não bastasse isso, descobrimos, lendo o Pentateuco, os
Profetas, os Escritos, os Evangelhos, as Epístolas e principalmente o
Apocalipse de João, que lá no céu também há livros, e que alguns servem até
para comer. E por essa razão não me surpreenderia, se podendo dar uma
espiadinha, flagrasse o nosso Luciano, ladeado por gente da estatura de um
Milton Schwantes, um Rubem Alves, ou um Maraschin, entre tantos outros,
debruçado, examinando atentamente o Livro da Vida, ainda fechado para nós, mas
definitivamente aberto para eles.
Pode ser que hoje, como outrora, o poder caia nas mãos dos
que acham o estudo um insuportável enfado da carne, dos que, se não destruírem
nossas bibliotecas, também não farão questão de preservá-las, muito menos
ampliá-las, mas há uma verdade que sempre prevalecerá: A memória de
uma biblioteca barbarizada ou vandalizada ainda é mais nobre e digna que a
infeliz lembrança dos nefastos vultos que a destruíram. E mesmos
estes são forçados a reconhecer que a sociedade só avança em sua humanidade
porque, em meio à multidão incontável de meros frequentadores de salas de aula,
há uns poucos verdadeiramente estudiosos. Que privilégio tivemos de conhecer de
perto um deles, um dos maiores!
Hoje, como nos recomenda o Pregador bíblico, devolvemos o pó
ao pó, cinza à cinza… Na confiança de que o espírito está em Deus e continua a
nos inspirar. Descanse em paz, querido Luciano, no jardim que você escolheu
para plantar a sua história. Quanto à sua memória, já de longa data está
enraizada no nosso coração, em alguns, está apenas germinando e, em outros, já
produz frutos que alimentam e alegram àquelas e àqueles que foram por você tão
ternamente pastoreados.
À Iris, nós só temos que agradecer por seu amor assim tão
delicado, tão dedicado, e por ter cuidado dele nos momentos mais difíceis,
inclusive na hora do a-Deus. Receba nosso carinho e no nosso abraço sinta-se
abraçada pelo próprio Luciano, porque cada um de nós aqui carregamos um pouco
dele em nós mesmos, e conte sempre com as nossas preces e os mais veementes e
comovidos anelos de saúde e bem-estar com gratas e felizes memórias.
O Senhor te abençoe e te guarde,
O Senhor faça resplandecer o rosto sobre ti
E tenha misericórdia de ti,
O Senhor sobre ti levante o seu rosto e te dê paz. (Nm 6.24-26)
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