A In-Justificação

Não sabeis que havemos de julgar os próprios anjos? Quanto mais as coisas desta vida! Entretanto, vós, quando tendes a julgar negócios terrenos, constituís um tribunal daqueles que não têm nenhuma aceitação na igreja. Leia I Co 6.1-11
Anjos no Julgamento Final, Michelangelo

Texto do revmo. Bispo Josue Adam Lazier.

O texto do apóstolo Paulo em epígrafe foi escrito numa perspectiva escatológica, ou seja, na compreensão de que a comunidade da época era a que marcaria o fim do mundo com a volta de Cristo aguardada por e para aquela geração, mas que não se constitui, por causa disto, num escrito menos instigante, provocador, relevante e norteador de reflexão que leve em conta as questões judiciais do presente. Os versículos 2 e 9 mostram o caráter apocalíptico e escatológico da comunidade cristã na compreensão paulina: ela julgará o mundo, ou seja, os injustos (v. 9), os que foram reduzidos a nada de acordo com I Coríntios 1:28, julgará os mensageiros cristãos e, portanto, poderia julgar as questões do dia a dia.

O texto é redigido em função das questões que envolviam membros da comunidade cristã na cidade de Corinto e que iniciaram processos judiciais contra outros membros. Para Paulo isto era como uma negação da fé e da experiência cristã. Ele entendia que os “santos e fiéis” da comunidade iriam julgar os demais: “ou não sabeis que os santos julgarão o mundo?” (6.1) e não ao contrário, os “injustos e infiéis” julgarem os que deveriam ter conhecimento da justiça do Reino de Deus.

Na verdade, há uma tensão quando este assunto é tratado. A tensão reside no fato de que os que tinham maiores condições de buscarem a justiça legal o fizeram contra aqueles que não tinham as mesmas condições. A comunidade cristã em Corinto era um reflexo da sociedade, ou seja, havia a estratificação social e os cristãos coríntios eram oriundos de diversas classes, incluindo a dos escravos e a dos trabalhadores das docas, que constituíam o maior número de membros daquela comunidade. Além das questões que acabaram se transformado em processos legais, havia as dificuldades e as diferenças com relação aos dons espirituais, agravando ainda mais os relacionamentos entre os membros daquela igreja.

O apóstolo trabalhava com a idéia de que entre os membros da comunidade havia quem pudesse ouvir as questões que envolviam a membresia, pois eram assuntos do dia a dia das pessoas, e mediar o diálogo e a busca pelo entendimento e pela reconciliação entre os envolvidos. Mas fazendo uma leitura mais apurada da questão, fica claro que a comunidade e a sua liderança não conseguiram lidar com as diferenças e com as querelas da membresia, preferindo que a Justiça Legal de Corinto julgasse estas situações.

As questões legais naquela época eram julgadas pelos magistrados e, especialmente, pelo governador romano. Em Corinto o Fórum do governador ficava num espaço que era freqüentado pelo público (Agorá), tendo em volta de si os vários deuses representados pelos templos e estátuas. Os julgamentos eram realizados voltados para estas "entidades" religiosas. Esperava-se, por exemplo, que Júpiter (deus romano) iluminasse os debates e julgamentos. Os juízes não eram muito claros e objetivos e no "seio daquela sociedade corrompida os subornos eram moeda corrente".

Portanto, para o apóstolo esta atitude de alguns membros da igreja se constituía numa "contradição com a natureza e com a grandeza escatológica da comunidade" e uma autêntica falta de sentimento cristão e negação do ensino de Jesus (Mateus 5:39-42). Ele concebia uma comunidade livre e justa, onde não haveria acepção de pessoas e, portanto, apela para a experiência que os coríntios tiveram (6.9,10 e 11). Perante um sistema legal opressor, corrompido e incapaz de cumprir a justiça e fazer valer os direitos das pessoas, como era o de Corinto, a comunidade cristã lá estabelecida deveria ser referencial de vivência e de prática da justiça na perspectiva do Reino de Deus.

Isto nos remete ao tempo presente, quando a Igreja se encontra envolvida em situações judiciais, tendo havido um crescimento deste tipo de demanda nos últimos anos, até mesmo por conta da valorização dos direitos civis. São vários os processos movidos contra a Igreja, suas Instituições, sua Sede Nacional, em função de decisões administrativas, pastorais, episcopais, etc. Na grande maioria dos casos a Igreja está tendo que reconsiderar suas decisões e restabelecer o direito ou a justiça envolvendo pessoas. Há casos que envolvem membros contra membros e casos ainda em que os advogados de ambos os lados fazem parte também da membresia. A Igreja, através de sua liderança e seus seguimentos representativos, não tem conseguido buscar o entendimento, o diálogo, a reconciliação, deixando que a Justiça Comum julgue o que poderia ser resolvido internamente, sem desrespeito ao direito, à justiça e à dignidade das pessoas. Quando isto acontece fica evidente a fragilidade da Igreja na questão do direito e da justiça.

Todas as pessoas podem recorrer à Justiça Comum para fazer valer seus direitos. Não entramos no mérito dos motivos que levaram a tais situações, mas não podemos deixar de perceber que seguidamente a Igreja tem sido considerada equivocada em suas ações ou decisões. Lamentavelmente! Estaria a Justiça errada em suas sentenças contra a Igreja?

Se a igreja quer ser a comunidade que busca promover a vida, sobretudo dos menos favorecidos, dos marginalizados, dos diminuídos, dos que não têm voz, ou seja, missionária e a serviço do povo, ela terá que criar meios a fim de favorecer e praticar o direito e a justiça em todas as instâncias, e denunciar quando direitos não forem respeitados e quando houver abuso de poder. No confronto com a macro-sociedade a Igreja não pode deixar de ser sal da terra e luz do mundo e de sinalizar, a que custo for, o Reino de Deus e a sua Justiça. Se a Igreja não cumprir com a tarefa de promover a autêntica liberdade e, conseqüentemente, a dignidade da vida, mediada pelos valores do Reino de Deus e sua justiça, ela incorre no risco de receber através da Justiça Comum, como instrumento de Deus, um lacre em sua porta com a seguinte sentença: injustificada.

A Igreja tem o dever de buscar na força do Evangelho e do Reino de Deus o poder do amor, do perdão, da reconciliação, da solidariedade, da compaixão e da justiça e julgar quando os que a representam deixarem de cumprir com o que prescreve o Evangelho de Cristo e os documentos conciliares da Igreja, bem como as leis que regem nossa sociedade. Somente assim a sua proclamação será ouvida e até os fundamentos das trevas se abalarão. A Igreja está numa encruzilhada: ficar na quietude, indiferença e sonolência ou assumir ser profética, transformadora, libertadora e, portanto, uma igreja comunidade, discípula, missionária, pastora e serva de Cristo. 

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