O cego de Jericó, Nicolas Poussim |
A grande questão entre a igreja e o mundo nunca foi
dogmática ou mesmo doutrinária. Sempre foi uma questão de pontos de vista. Não
propriamente a visão que cada um tem de si, mas como da um enxerga o outro e vice-versa.
Não digo com isso que um olhar diferente derrubaria a diferença que há entre
eles e os aproximaria de vez, mas penso que muitas das diferenças que hoje se
acentuam como cruciais, estas, sim, seriam derrubadas.
Não há como acreditar que enquanto a igreja enxergar o mundo
como uma horda maldita que caminha a passos largos para o inferno e o mundo
enxergar a igreja como uma trupe de iludidos por uma fé irracional e absurda,
possa haver realmente qualquer possibilidade de diálogo. De um lado só se pode
esperar zombaria e desprezo, enquanto de outro, apenas uma falsa piedade
disfarçada por campanhas proselitistas. É bem certo que ambos se encontram em situação muito parecida com a do primeiro estágio de cura a que o cego do
texto do evangelho de Marcos foi submetido. Tanto um quanto outro enxergava as
pessoas como simples objetos que se movem sem um propósito válido e em direção aos caos absoluto.
Muito embora a definição de herege seja a pessoa que é
contrária aos dogmas de uma determinada religião ou seita, na prática
prevalece a máxima de que herege é aquele que não acredita na minha religião,
seja ela até mesmo o ateísmo. É exatamente por causa dessa incompatibilidade de
ideias que o evangelista acentua essa cura em dois estágios distintos, ou seja,
quando se faz necessária uma segunda intervenção de Cristo. Um segundo toque
que colocaria as coisas nos lugares, onde elas pudessem ser enxergadas como
realmente são.
Não sei como deixei de lado este texto por tanto tempo,
posto que ele sempre foi um dos meus favoritos. Vale a pena lê-lo, pois é
absolutamente fantástico em todos os seus detalhes. Veremos que Jesus pega o
cego pela mão, com a intenção nítida de guiá-lo para fora de uma cidade
incrédula que se mostrara indigna de presenciar o milagre. Apesar da igreja
mostrar um mórbido prazer na perdição do pecador, Jesus sempre tratou do
assunto com profundo pesar, declarando de todas as formas qual era a sua verdadeira vontade.
Este cuspir nos olhos, embora nos pareça estranho e até nojento, é
totalmente diferente da narrativa de João 9.6, quando Jesus faz um lodo com
saliva e pó. Este ato visava remover a secreção que impediria a visão do cego,
mesmo que organicamente este já tivesse sido curado da sua cegueira. Serviu
para mostrar que o milagre da restauração da vista veio acompanhado de uma
atitude natural, concreta e nada sobrenatural em favor da vítima, como
poderíamos pensar. Uma atitude para a qual a igreja está sempre sendo desafiada
a tomar: retirar o cisco dos olhos do mundo, mas apenas e tão somente após
retirarmos a trave que está impedindo a nossa visão.
O texto também é uma sentença condenatória à onda de
milagres que estão sendo anunciados de cima dos nossos púlpitos. Enquanto que
estes falsos milagres são forjados pelos meios mais estapafúrdios e não
apresentam qualquer finalidade específica, os verdadeiros milagres insistem em
se anunciar pela simplicidade e pela objetividade, e, para o nosso desapontamento, nos lugares e situações inimagináveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário