Salmo 127, autor desconhecido |
Inútil vos será
levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes;
aos seus amados ele o dá enquanto dormem. Salmos 127.2
Não há uma pessoa que lendo esse salmo pela primeira vez, não
confirme a ideia corrente de que Deus privilegia aqueles que das formas mais
diversas inclinam o seu coração para ele, e que assim comete o absurdo contra
quem se esforça ao limite extremo para construir e sua casa e mantê-la segura. Não
é exatamente isso que apregoa este salmo.
Muito embora eu creia que Deus, ao longo da História, teve
preferências nítidas por certas pessoas, não consigo associar este dado ao
conceito que é pregado em muitas igrejas, visando angariar fiéis e suas
ofertas. Eu creio que Deus foi completamente apaixonado por Abraão; nunca
escondeu a sua preferência por Moisés; não disfarçou a sua predileção por Davi.
Mas daí a dizer que esses homens passaram a vida recebendo bênçãos que outros
mortais jamais sonhariam em ter, não expressa a mais sutil sombra da realidade.
A vida deles, pelo contrário, foi um colorário de incertezas e desafios.
Alguém imagina que foi fácil a vida de Abraão, quando
resolveu largar a segurança de uma nação para seguir uma voz que somente ele
ouvia, quando seus contemporâneos tinham na natureza as provas que necessitavam
para cultuar seus deuses? Não é verdade que Moisés foi intimado a fazer o
inexequível, quando impelido por uma visão perturbadora decide ir enfrentar o maior
poder bélico de seu tempo? Quem viu o recente filme Exodus, teve a noção de que
a saída dos hebreus do Egito foi um simples afrouxamento do faraó. Nada disso.
Os hebreus espoliaram aqueles que antes os oprimiam: Ex 3.22 - Cada mulher pedirá à sua vizinha e à sua hóspeda jóias de prata, e
jóias de ouro, e vestimentas; as quais poreis sobre vossos filhos e sobre
vossas filhas; e despojareis os egípcios. Quem toma conhecimento dos
tormentos que aconteceram ao longo da Davi, desde que Deus decidiu fazê-lo rei
de Israel, não pode de forma alguma aceitar essa ideia.
Então, o que exatamente quis nos transmitir o salmista? Esse
salmo é um alerta constante contra os que, viciados em seus trabalhos, se
esqueceram de dar a atenção devida às suas famílias. Um alerta também contra a
arrogância da autossuficiência enganadora. Serve também para nos lembrar de que
é de Deus que provêm as bênçãos para um trabalho produtivo e a segurança para
os infortúnios que constantemente nos assaltam. E também não deixa de ser um eficaz antídoto
contra toda e qualquer ansiedade que possamos manifestar.
Uma das razões, e talvez a principal delas, é que Deus não
diferencia o trabalho sagrado do trabalho secular. Para ele tudo é trabalho, e
ele quer participar ativamente de ambos: Cl 3.23 - O que vocês fizerem façam de todo o coração, como se estivessem
servindo o Senhor e não as pessoas. Outra razão é que Deus privilegia e
essencial em detrimento do material. Ele quer que antes de construir casas, construamos
lares, onde a convivência em amor, sem o qual qualquer empreendimento é vão e
inútil.
O verso declara em alta voz que na maioria das vezes a excitação
pela segurança esconde uma vaidade exacerbada. Não são construídos condomínios
de luxo apenas para garantir a segurança dos condôminos. Existe por trás toda
uma cultura de status e poder, que visa, acima de tudo, separar o indivíduo da
sociedade.
Então,
porque somente aos amados? A tentativa de definição de Deus mais exata está em
I João 4.8: Aquele que não ama não
conhece a Deus, pois Deus é amor. Tanto o vício do trabalho, "construir
casas", quanto a ansiedade por segurança, "vigiar a cidade",
prejudicam sobremodo os relacionamentos, que é o lugar exato para a
demonstração de amor. Somente que ama pode reconhecer o amor de Deus, e somente
quem é amado pode confiar plenamente nesse amor. Richard Bach
entendeu esse salmo na sua mais essencial questão, quando disse: se buscas a segurança antes da felicidade, a
segunda será o preço que terás que pagar pela primeira.
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