Marduk e Tiamat |
Diferentemente dos fenícios e dos gregos, os israelitas não
eram um povo de marinheiros. Os empreendimentos marítimos de Salomão e de
Josafá não tiveram continuação. Foi necessária a experiência da dispersão para
que as “ilhas” entrassem no horizonte geográfico de Israel e que os judeus se
acostumassem a longas viagens marítimas (Jn 1.3). Porém, já era coisa comum na
época do Segundo Testamento, e São Paulo, judeu da dispersão, achava natural
singrar o Mediterrâneo para anunciar o Evangelho. Contudo, desde a época mais
antiga, o mar figura nos textos bíblicos com uma conotação religiosa
determinada.
Do monstro mítico à criatura Deus
Todo homem experimenta diante do mar o sentimento de um
poder formidável, indomável, terrível quando se desencadeia, ameaçador para os
marinheiros (Sl 107.23-30), como para as populações litorâneas, a quem sempre
ameaça submergir. A esse mar, a esse oceano cósmico que rodeia o continente, é
que a mitologia mesopotâmica personifica sob a forma de uma besta monstruosa;
sob o nome de Tiamat, esse dragão representava as potências caóticas e
devastadoras que Marduk, o deus da ordem, devia reduzir à impotência a fim de
organizar o cosmos. A mitologia de Ugarit igualmente opunha Yam, o deus-Mar, a Baal,
numa luta pela soberania do mundo divino.
Na Bíblia, ao contrário, o mar é reduzido à categoria de
simples criatura. No relato clássico da criação, Javé divide em dois as águas
do abismo Tehom, como fazia Marduk com
o corpo de Tiamat. Mas a imagem está completamente desmitizada, porque não há mais
luta entre Deus todo-poderoso e o caos aquoso primitivo. Ao organizar o mundo,
Javé impôs uma vez por todas um limite que elas não mais poderiam ultrapassar sem
sua ordem (Gn 1.9s; SI 104.6-9; Pv 8.27ss). Os livros sapienciais se comprazem
em descrever esta ordem do mundo em que entra o mar, utilizando para tanto os
dados de uma ciência elementar: a terra repousa sobre as águas de um abismo inferior
(Sl 24.2), as quais sobem por ela a fim de alimentar as fontes (Gn 7.11; 8.2;
Job 38.16; Dt 33.13) e se comunicam com as do oceano. Desse modo o mar é
recolocado em seu lugar entre as criaturas e convidado a celebrar, com todas as
criaturas, o seu criador (Sl 69.35; Dt 3.78).
O simbolismo religioso do mar.
Nessa perspectiva doutrinal muito firme, os autores sacros
podem, sem perigo algum, retomar as velhas imagens míticas despojadas de seu veneno.
O mar de bronze (I Rs 7.23ss) talvez introduza no culto do templo o simbolismo
cósmico do oceano primordial, se é verdade que a representação do mesmo. Mas a
Bíblia utiliza de preferência outra categoria de símbolos. As águas da voragem
marinha fornecem-lhe a mais expressiva imagem dum perigo mortal (Sl 69.3), pois
o seu fundo é imaginado próximo do sheôl
(Jn 2.6s). Enfim, um bafo da força maligna desordenado, orgulhoso,
continua a flutuar em tomo ao mar, ainda representado ocasionalmente pela
figura das Bestas mitológicas. O mar simboliza então as potências adversas que
Javé tem que vencer para fazer triunfar o seu desígnio.
Essa imagem épica conhece três aplicações. Em primeiro
lugar, a atividade criadora de Deus é por vezes evocada poeticamente sob os
traços dum combate primordial (Is 51.9; Job 7.12; 38.8-11). Mais frequentemente,
o símbolo é historicizado. Assim a experiência histórica do Êxodo, em que
Javé faz secar o mar Vermelho para abrir um caminho para o seu povo (Ex 14-15;
Sl 77.17-20; 114.3-5), torna-se uma vitória divina sobre o Dragão do grande
abismo (Is 51.10); igualmente, o murmúrio das nações pagãs em revolta contra
Deus é comparado ao rumor dos mares (Is 5.30; 17.12).
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