Sara apresenta Agar a Abraão, Matthias Stom em 1637 |
O povo de Deus confere à fecundidade um duplo valor: ela
responde ao apelo lançado por seu Criador nas origens, e possibilita à
posteridade de Abraão tornar-se inumerável de acordo com a Promessa. A
esterilidade contraria esse desígnio de Deus; é um mal, contra o qual Israel
luta sem esmorecimento, e cujo sentido Deus lhe revela pouco a pouco.
A luta contra a esterilidade
A esterilidade é um mal, como o sofrimento e a morte. Ela
parece opor-se ao mandamento do Criador que quer a fecundidade e a vida. É uma vergonha
não fazer sobreviver o próprio nome. Daí as queixas de Abraão: Que me importa meu servo adotado, se eu
morro sem filhos? E Sara, sua mulher, sente-se desprezada por sua serva
fecunda. Raquel suplica ao marido: Dá-me filhos! ou eu morrerei, mas Jacó se
enfurece contra ela: Estou eu porventura
no lugar de Deus que te recusou a maternidade? Só Deus pode abrir o seio
estéril.
Contra esse mal é preciso lutar.
É o que faz Raquel, como outrora a sua sogra Sara, que sem
dúvida se fundamentava num costume sancionado no código de Hammurabi, ela dá
ao esposo uma das suas servas para que esta dê à luz sobre os seus joelhos;
assim faz também Lia, que, depois de ter tido quatro filhos, cessou por um
tempo de ser mãe. Assim, por um artifício, o homem contorna o obstáculo da esterilidade,
conferindo a seus filhos adotivos os mesmos direitos que aos que tivessem
saído das suas próprias entranhas.
Deus vencedor da esterilidade.
Mas estes são simples estratagemas, legais ou não, para
superar o estancamento do fluxo da vida. Vencer a esterilidade está reservado
só a Deus que se mostra fiel à sua promessa e, com isso, anuncia um mistério
maior. Escritor do sagrado intencionalmente
sublinhou que as mulheres dos três ancestrais do povo eleito são estéreis: Sara,
Rebeca e Raquel, antes de lhes ser concedida uma progenitura. A longa encenação
do nascimento de Isaac quer mostrar ao mesmo tempo o mistério da eleição
gratuita e da graça fecunda. Conforme o interpretará Paulo, o homem deve
confessar-se impotente e deve confessar com fé o poder de Deus de suscitar a
vida numa terra deserta: a fé triunfa sobre a morte estéril e suscita a vida. Eleição
gratuita que é celebrada por Ana, a estéril: A mulher estéril dá à luz sete vezes, mas a mãe de muitos filhos fenece.
A esterilidade aceita
Deus visita as mulheres estéreis, mostrando que os homens
não têm razão em considerar a esterilidade como um simples castigo. Sem dúvida,
em certo sentido ela o é, uma vez que Deus ordena a Jeremias guardar o celibato
para significar a esterilidade do povo em estado de pecado; e quando a esposa
abandonada tiver de novo obtido as boas graças, o profeta poderá reconfortá-la:
Grita de alegria, estéril, que não davas
à luz... Mais numerosos são os filhos
da abandonada que os filhos da esposa. Confessando seu pecado, Jerusalém
reconheceu que a sua esterilidade significava o seu divórcio de Deus; ela se
preparava para uma fecundidade nova, mais maravilhosa ainda: ela agora conta
as nações entre os seus filhos.
O que encontra um sentido no plano comunitário não pode ser
compreendido senão lentamente no plano individual. A Lei, embora tomando a defesa
da mulher menos amada, proibia ao eunuco oferecer sacrifícios, reduzindo-o à
sorte dos bastardos: era propriamente excluído do povo. Foi necessário o desastre
do exílio para romper essa estima exclusiva da fecundidade carnal; no retorno
de Babilônia, um oráculo totalmente novo é proclamado: Is 56.3 - Que o eunuco não vá dizer: Quanto a mim, sou
uma árvore seca. Pois assim fala Javé: Aos eunucos que... se mantêm firmemente
na minha aliança, darei uma esteia e um nome melhor que filhos e filhas, dar-lhes-ei
um nome eterno que jamais será suprimido. Assim o homem se dava conta de
que a fecundidade física não era necessária à sua sobrevivência, ao menos na
memória de Deus.
Entre os sábios, o mesmo progresso. Continuam eles a dar
provas dum bom-senso religioso bastante banal: Mais vale um filho do que
mil, e morrer sem filhos, mais do que ter filhos ímpios; mas com a fé na
sobrevivência plena e gloriosa, os crentes descobrem e proclamam a existência de
uma fecundidade espiritual autêntica: Sb 3.13 e 4.1 - Feliz da mulher estéril mas sem mancha! Sua fecundidade aparecerá por
ocasião da ‘visita das almas. Feliz do eunuco cuja mão não pratica o mal. Mais
vale não ter filhos e ter a virtude, pois a imortalidade se liga à sua memória.
Daí para diante o olhar do crente já não está obstinadamente preso à
fecundidade terrestre, está preparado para divisar um sentido no ‘fruto das
‘obras produzido pela virtude e que torna imortal; para tal era necessário que
fosse aceito e transformado o mal que é a esterilidade.
A esterilidade voluntária
Enquanto a filha de Jefté, condenada a morrer sem filhos,
chora a sua virgindade, eis que Jeremias aceita a missão divina de permanecer
celibatário: com isso ele ainda só simboliza um aspecto negativo, a
esterilidade culposa do povo. Em figura o Primeiro Testamento já anunciava
positivamente a virgindade fecunda. O sinal recebido por Maria por ocasião da
Anunciação é justamente a gravidez maravilhosa da sua prima Isabel: aquela
que por sua esterilidade lembra a longa história das mulheres estéreis
tornadas fecundas pela ‘visita de Deus significa para Maria a maternidade
virginal anunciada. Então se inaugura uma nova era em Maria, cujo fruto é o
próprio Filho de Deus, plenitude da fecundidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário