No vale da luz e no vale da sombra

Vale da Sombra da Morte, João Ataíde em 2010
Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam. Leia Salmos 23.

Basta um olhar rápido sobre a atribulada vida de rei Davi para concluirmos que o mais conhecido salmo da Bíblia, cuja autoria lhe é atribuída, não reflete mais do que uns poucos breves momentos da sua existência. No contexto geral este salmo pode sim confirmar particularidades que foram muito próprias à vida deste personagem bíblico. O simples fato de Davi ter sido um pastor, já lhe credencia a fazer uma analogia profunda entre os atributos inerentes à sua antiga profissão com o zelo com que Deus trata as suas criaturas.

Podemos concluir também que na maioria das lutas que este rei travou, tanto dentro como fora de sua casa, a mão de Deus esteve sobre ele fazendo com que seu cálice transbordasse em sucessivas vitórias. Contudo, a grande inspiração deste salmo não nos leva primordialmente ao conforto, à segurança e à paz que ele transmite, mas à responsabilidade da qual esses momentos grandiosos proporcionados por Deus não podem nos fazer negligenciar.

O salmo diz que por mais que andemos pelos vales verdejantes, que repousemos junto a águas tranquilas, que a nossa alma esteja gozando do refrigério da presença e do amor de Deus, um dia teremos obrigatoriamente que passar pelo Vale da Sombra da Morte. A morte é uma realidade até mesmo no salmo mais reconfortante da Bíblia. Talvez uma das realidades que mais se fizeram presentes na vida de Davi, que além de passar pelo inconsolável momento de ter que sepultar alguns de seus filhos, também teve por diversas vezes a sua vida ameaçada. De ninguém mais do que este rei podemos dizer que viveu entre essas duas realidades: a do vale da luz e a do vale da sombra.

E isso nos leva a uma segunda conclusão: a grandeza da fé declarada neste salmo não é pelo fato de que a fé subsistiu por causa das maravilhosas bênçãos nele descritas, mas afirmar que a fé sobreviveu apesar das inúmeras adversidades transcorridas. Não estranhem, mas na Bíblia nós encontramos esses dois tipos de fé: a fé condicional de Jacó, a fé por causa de. Aquela que antes de declarar a fé em Deus desfia um rosário de exigências, como as descritas em Gn 28.20, que diz: Fez também Jacó um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta jornada que empreendo, e me der pão para comer e roupa que me vista, de maneira que eu volte em paz para a casa de meu pai, então, o SENHOR será o meu Deus. Ou seja, uma fé que praticamente obriga Deus a se tornar o sócio capitalista no seu empreendimento, onde Jacó entraria apenas com a fé e Deus com todo o restante. 

Mas também podemos ver a fé incondicional, ou a fé a pesar de. A fé que transborda na profecia de Habacuque 3.17: Ainda que as figueiras não produzam frutas, as parreiras não deem uvas; ainda que não haja azeitonas para apanhar nem trigo para colher; ainda que não haja mais ovelhas nos campos nem gado nos currais, mesmo assim eu darei graças ao Senhor e louvarei a Deus, o meu Salvador. A mesma fé que encontramos no salmista, quando relata que a fé insiste em reconhecer a soberania de Deus mesmo quando a sua visão não conseguia contemplar nada além de restos mortais, nada além de um vale sombrio com pequenos oásis de relva verde e um minúsculo riacho.

Conta-se que um homem andava pelas ruas de uma cidade carregando um balde com água e uma tocha acesa. Quando lhe foi perguntado o motivo que o levou a tal atitude respondeu: com o fogo da tocha eu vou queimar o céu, e com a água do balde eu vou apagar o inferno. Esse povo tem que entender de uma vez por todas que o amor a Deus não pode ser jamais calcado no que ele pode fazer, e sim pelo que ele já fez por nós.

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