O Ano Novo I

O tempo indeterminado, Seth Siro Anton (1973-)
Antes do relógio bater a meia-noite hoje, todos vamos prestar atenção nele. E desta vez vamos vê-lo de maneira bem diferente do que normalmente o vemos. Diferente de quando olhamos para ele quando acordamos, quando temos que pegar a condução, na hora do almoço ou indo a um compromisso. Porque na última noite do ano aquele relógio que usamos sempre vai marcar uma hora diferente, uma hora que tem um sentido bem especial.

Isso é bom! Porque em todas as outras horas do ano nós agimos de acordo com ele, seja  para estarmos no tempo certo no lugar certo, seja para encontrarmos alguém, ou mesmo para fazermos algo na hora certa, e isso é ele quem determina. Mas na última noite do ano nós não agimos assim. Nós não vamos a lugar algum. Alguns de nós estaremos na igreja, outros em casa, outros ainda em algum lugar propício para esta ocasião, mas estaremos apenas esperando. O relógio não estará mais mandando em nós. Porque de repente é o tempo que nos move em vez do relógio.

Os últimos momentos do ano estão chegando e esses momentos são diferentes, porque estaremos tentando ouvir o que normalmente se passa em silêncio. Logo mais, nós ouviremos a voz do tempo falando. Nós estaremos ouvindo o barulho desta noite tão fora do comum. Nós estaremos ouvindo o barulho do Ano Novo chegando, e quem de nós não sente um frio na espinha quando a meia-noite chega? Seria pelo fato de termos uma percepção diferente desta noite da que temos nas outras noites do ano? Sim, mas há razões para isso, e eu gostaria de tentar sugerir algumas.

A primeira é porque os relógios são redondos, pelo menos a maioria deles. Mas o que vou dizer se aplica aos não redondos também. Os ponteiros, ou mesmo os dígitos, voltam sempre para o ponto inicial, nunca vão, além disso. Isso faz com que tenhamos a ilusão de que tudo nessa vida se repete. Ficamos com a falsa impressão de que podemos sempre começar de novo do zero amanhã. Se o relógio pode, por que nós não? Mas nessa noite nós experimentamos o tempo de uma maneira singular. Nessa noite o tempo se move não mais em um círculo, mas se move numa linha reta. Embora pessoas acreditem que em algum lugar há um relógio gigante que marque a passagem do ano e que ele faz tudo começar de novo, esse relógio não existe. Por isso nós temos que visualizar a passagem do ano como uma linha reta. Uma linha que leva a marca de cada ano que passa. Assim, nós deixamos atrás de nós um trecho após outro. Nessa linha o ponteiro não se volta para onde estava antes.

Uma vez que as ações foram concretizadas, nós não podemos neutralizá-las ou dizermos que vamos fazer tudo de novo amanhã. Em cada trecho dessa linha reta nós fizemos alguma coisa, nós escolhemos uma profissão, começamos uma amizade ou fizemos mal a alguém. Isso já se tornou parte do nosso passado. Gostaríamos de refazer muitas dessas coisas de outro jeito, se pudéssemos voltar atrás, mas ninguém pode. É impossível. Nós só podemos ir para frente e levando conosco toda a bagagem do passado.

Deixem-me mudar de figura para explicar melhor porque vemos o tempo diferente. Vamos visualizar essa linha reta do tempo como um corredor comprido e cheio de portas. A cada Ano Novo nós abrimos uma porta nova daquele corredor. O problema é que não existe uma maçaneta do lado de dentro da porta. Não podemos voltar e abrir essa porta e entrar em outra porta qualquer e começar de novo como os ponteiros do relógio fazem. Mesmo que não queiramos admitir, todos sabemos que um dia aquele corredor terá um fim. No fim do corredor chegaremos à última porta, e então veremos que a linha circular do relógio não funciona nesse corredor, que o círculo do relógio não passa de uma ilusão ou de uma fantasia do ser humano.

O fim de cada um chega. O fim desse ano está chegando e nós sentimos nessa hora o tempo de modo diferente. Sentimos que cada momento de nossa vida é precioso, cada momento é singular e que cada momento nunca mais voltará. Sentimos que o tempo corre para frente e sentimos também que ele corre para um fim. Sentimos que somos finitos, mas carregamos sempre conosco esse conhecimento do fim sem percebermos. Sem estarmos conscientes do fato estamos sempre pensando na morte. E todos fazemos isso a toda hora através de frases curtas e corriqueiras, tais como: eu não tenho tempo, eu não posso agora, estou com pressa. (continua)

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