Um dia de trabalho

Anita e Mario Way, 50 anos de trabalho com as crianças, 2013

Por isso, o Senhor espera, para ter misericórdia de vós, e se detém, para se compadecer de vós, porque o Senhor é Deus de justiça. Quando te desviares para a direita e quando te desviares para a esquerda, os teus ouvidos ouvirão atrás de ti uma palavra, dizendo: Este é o caminho, andai por ele. Isaías 30.18-21

Quando um professor do Seminário, nos idos de 1978, exaltou o trabalho das pessoas que dedicaram esse feriado ao serviço do Orfanato Ana Gonzaga, no Rio de Janeiro, me enchi de orgulho, porque podia ser contado entre elas. Infelizmente aquela foi uma das últimas vezes que pude sentir esse orgulho, porque o começo do fim estava decretado. 

Recebi como herança dos meus pais um amor indescritível por aquela instituição. Minha mãe, quando criança, chegou a levar beliscões da austera senhora que, com muita justiça, emprestou o nome ao orfanato. Aquela que era o último membro de uma riquíssima família, fez da igreja a sua família. Apesar do valor deste valoroso gesto, dona Ana Gonzaga nunca conseguiu ser fiel no pouco e muito menos no muito, porque ela foi fiel no tudo. Doou absolutamente tudo que possuía, fazendas que até para os padrões antigos eram imensas, pelo o antigo de construir um orfanato, sonho que era latente também na sua amada igreja.

Assim fui criado, sentindo-me responsável pelo sustento daquelas crianças. Era um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair. Contudo, isso não me pesava nem um pouco, porque ali era o lugar de encontrar os velhos amigos de outras igrejas e de arriscar o namoro com alguma garota nova na fé, porque as que me conheciam já não me davam mais atenção. A única rivalidade entre as igrejas era resolvida no ginásio, no tradicional torneio de futebol de salão. 

A quem estou enganando? As pessoas da minha barraca nutriam uma rivalidade secreta com as barracas das igrejas de Cascadura e da Tijuca, disputando com elas a honra de ser a igreja que mais arrecadava na festa. Os da Tijuca tinham, além da imensa cozinha, a estrutura de uma grande rede de fast-food que a colocava integralmente a serviço da instituição. Brigávamos contra eles centavo a centavo com nossos suculentos cachorros quentes e nosso geladíssimo caldo de cana. Para igualar a disputa, no balcão eu tentava atrair compradores com um chavão tirado indevidamente da Bíblia: Comamos e bebamos porque amanhã morreremos!

A coisa foi mudando. Nem todas as igrejas mantiveram a tradição de montarem as suas barraquinhas com quase tudo que podia ser vendido. Algumas, mostrando um amor distante, passaram a enviar apenas um cheque. Os pastores não mais privilegiavam aquele trabalho. Poucos eram os que davam o ar da sua graça na festa. No lugar do esperado desfile das crianças do orfanato, passaram a desfilar por lá candidatos a cargos políticos, fingindo ser populares naquele lugar que nunca haviam pisado anteriormente. Posando ao lado das crianças as quais jamais deram qualquer atenção. Fazendo-se íntimos dos organizadores para disputar um espaço maior no palco, que antigamente era ocupado somente por toscos corais e por desafinados grupos musicais. Em fim, a coisa toda era muito boa.

Mas um dia piorou de vez. Piorou tanto que atraiu a atenção da peste mais perniciosa que já se fez presente em uma reunião de cristãos: O artista gospel. Aqueles enfatuados que chegavam arrogantes ao orfanato em helicópteros ou em carros de luxo reclamando constantemente por não terem um camarim à altura. Nunca souberam, antes disso, que ali havia um trabalho com crianças órfãs e que este trabalho era mantido por igrejas humildes que não podiam sequer pensar em pagar os seus cachês. Os mega stars iam lá apenas por exigência dos seus contratos, para enriquecer mais ainda os ávidos donos das gravadoras. Por conta disso, passaram a atrair crentes de igrejas estranhas, pessoas que em nada pareciam com os antigos frequentadores do local, muito menos com a tradição da festa. Assim, desfiguraram por inteiro o antigo sonho de uma igreja que orgulhosa e penosamente mantinha o seu orfanato.

Não sei se magoado, frustrado ou simplesmente deslocado no tempo, só sei que num dia 1° de maio, que era o dia em que eu mais trabalhava no ano, estou aqui sentado, sem fazer nada. E pior, sem vontade alguma de fazer aquilo que no passado me deu tanto trabalho e tanto orgulho.


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