Bebei dele todo(s)

Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. E, tendo cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras.  Mt 26.26ss
Última Ceia, Walter Rane (1949-)
Enquanto ajudava a celebração da Ceia do Senhor em um domingo, me veio a memória lembranças as pregações que o meu pai fazia fundamentadas nas conclusões que tirava dos textos bíblicos, que aqueles que o admiravam diziam ser no mínimo pouco ortodoxas, para não chamá-las diretamente de heréticas. O que tinha de mais curioso nisso é que ele não buscava os textos mais complexos ou aqueles que sobre os quais se podia dizer que pairava uma dúvida razoável. Não, ele complicava o que havia de mais simples e de mais consensual. Ele fazia questão de questionar as cláusulas pétreas da hermenêutica bíblica e as suas interpretações definitivas.


Certa vez ao comentar sobre o pecado de Adão ele disse: O grande pecado de Adão foi querer ser igual a Deus. Imaginem o quanto Deus ficou decepcionado com ele. As pretensões de Adão eram muito pequenas diante do muito que Deus esperava dele. Um dos grandes desejos de qualquer pai em relação ai seu filho e que este o supere em inteligência, em criatividade, em beleza, enfim, em todas as coisas. Qualquer pai quer que seu filho seja muito mais e vá muito maios longe do que ele conseguiu ir. Pois é, o grande pecado de Adão foi o de querer ser só igual a Deus, enquanto Deus esperava tanto dele. Eu fico pensando o que aconteceria comigo se no sermão de prova eu fizesse apologia a este pensamento, ou se pelo menos ousasse citá-lo para a banca que me examinava. Na melhor das hipóteses eu ia antecipar o que ouvi de um senhor após pregar numa igreja do interior: Pastozinho bom esse “né”? Vai pregar bem assim no quinto dos inferno.

Meu pai também tinha uma interpretação muito particular para este texto do evangelho que introduz a Santa Ceia. Ele, com o seu conhecimento de grego, lia claramente “bebei dele todo”, e assim interpretava que o cálice da ceia deveria ser sorvido até a última gota em obediência a uma ordem direta de Jesus Cristo. Vale ressaltar que ele sempre afirmava ser a Ceia do Senhor e não da igreja, e que por isso indistintamente todos tinham acesso a ela. Mas em uma interpretação individual, aquela que cada pessoa deve ter para si em particular diante da Ceia do Senhor, ele entendia que deveria absorver tudo o que aquele canal da graça de Deus, o que John Wesley afirmava ser a Santa Ceia, tinha a comunicar e a propiciar. Ele entendia que cada gota do vinho da Ceia era uma porção infinita da graça que Deus quer comunicar aos seus filhos. Então, assim como os padres católicos recolhem e consomem todas as migalhas da hóstia, porque, segundo a doutrina da transubstanciação própria da sua igreja, aquele é de fato o corpo de Cristo, o meu pai, que não agia motivado pela mesma doutrina, consumia até a última gota da ceia do vinho.

Mas ele não fazia isso simplesmente para ser diferente ou para criar um modismo a ser imitado, mas sim por que tinha em mente o sacrifício de Cristo, que foi, de igual forma, até a última gota e até a derradeira consequência. Para o meu pai, todo aquele que participava da Ceia tinha que conhecer a dimensão exata do sacrifício que ela anuncia, da mesma forma em que se beneficia da graça que ela comunica.


Bebei dele todos, indistintamente sem cerimônia, mas com a certeza do que o sangue que nos é oferecido de graça custou um preço altíssimo. Bebei dele todo, porque assim é a dinâmica da graça de Deus, ela exigiu absolutamente tudo daquele que a concede, para custar absolutamente nada para aquele que a aceita.  

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