Queria agradecer, mas não sei como

O retorno do filho pródigo, James Tissot
Quero manifestar publicamente a minha gratidão a Deus pelo transcurso do meu 60° aniversário que acontece justamente hoje, dia vinte e cinco de outubro. Mesmo após todos esses anos ainda não sei bem o que deveria privilegiar nesta ação de graças. Não posso dizer com certeza que foram os livramentos em que minha vida esteve em risco, e que não foram poucos. Não saberia dizer se foram pelas vezes que consegui escapar das investidas do regime ditatorial sobre mim, e olhem que ele esteve bem próximo de me riscar do mapa. Não sei também seria pelos pais e avós que me legaram a fé que hoje professo, se pela família que sempre me apoiou, mesmo quando não concordava com minhas decisões, ou pelo filho fantástico que me deu um neto mais fantástico ainda. Não poderia deixar de agradecer pela igreja na qual congreguei, e muito menos pela que hoje congrego. Pela revolução definitiva e sem volta que causou em mim o seminário metodista. Pelos grandes e pequenos amigos, principalmente por aqueles que comigo estavam nas várias vezes que vi o Diabo de perto. Como se pode ver, motivos não faltam, mas ainda não encerram o meu desejo de manifestar esta gratidão que me toma de assalto neste dia.

Quem sabe, talvez eu devesse inverter a direção e começar a ser grato pelas vezes que saí ferido e derrotado, quando o livramento parece ter chegado tarde? Quem sabe agradecer pelo prejuízo que os anos de chumbo da ditadura brasileira me causaram? Não sei bem se seria certo agradecer pelas vezes que fiz minha mãe chorar, pelas vezes que decepcionei o meu pai ou por quando não honrei a memória dos meus avós. Será que estas coisas visivelmente ruins não teriam contribuído mais do que as coisas boas para a formação da pessoa que sou hoje? O balanço atual entre bênçãos e derrotas é positivo? Pode ser também que não seja. Se eu for fazer uma relação entre as tantas manifestações de vitórias, de conquistas e realizações que vejo serem anunciadas em todos os locais, por diversas pessoas e em nome desse Deus a quem oro neste momento, fico até na dúvida se tenho motivos para agradecer realmente.

O que fazer com esse amontoado de bênçãos e fracassos? Negar que as pessoas citadas acima estejam de fato recebendo tudo e muito mais do que eu consegui até hoje, através de uma prática de fé que não foi tão onerosa quanto a que me baseei todos esses anos? Reconhecer que estou predestinado a não ser contemplado com bênçãos desta natureza? Do que estou reclamando? Eu nunca fui o cristão que realmente pretendia ser. Nem de longe fui o pai, o filho, o amigo ou o marido que projetei em mim mesmo. Voltando aos bem aventurados cristãos de hoje, será que sou somente eu que me sinto assim? Tenho que confessar que até pouco tempo atrás eu pensava exatamente desta forma, até um dia eu li com atenção o capítulo 7 da carta de Paulo aos romanos, principalmente quando ele diz: miserável homem que sou. Esperem aí, quem disse isso não foi o Zé das Couves, foi o apóstolo Paulo, o teólogo que mais entendeu a mente de Cristo e que mais colocou em prática os seus ensinamentos. Paulo, como eu, também queria fazer o bem, mas não fazia, queria deixar de fazer o mal, mas não conseguia. Ele tinha algo dentro dele que o impulsionava a fazer justamente o contrário do que ele pretendia. Acho curioso que ele não chamou esta força estranha de demônio, de encosto ou de qualquer desses frequentes e presentes inimigos responsáveis pelas doenças e infortúnios. Ele chamou isso de pecado: o pecado que habita em mim.

Mas graças a Deus, aqui estou eu agradecendo de novo, que somos somente eu e Paulo que nos sentimos assim, não é? O restante da cristandade não faz nem ideia do que isso quer dizer ou do que representa na vida de alguém. Mas vamos apenas pensar que seria possível que não fosse bem assim. Que a contabilidade da grande maioria dos cristãos não fechasse tão favoravelmente como costumam dizer. Vamos imaginar que a nossa oração mais sincera tivesse um não definitivo com resposta, ou que o Deus se recusasse a tirar de nós o espinho na carne. Ainda assim teríamos motivo para agradecer a não ser pelas dádivas universais, nome que Wesley deu a dons como o ar que respiramos, a água que bebemos ou o fato de estarmos vivos.

Quando Paulo diz: miserável homem que sou, Jeremias amaldiçoa o dia do seu nascimento e Jó diz ter sido um desperdício dois seios para o amamentarem, não seria uma tarefa impossível tentar encaixar um momento de gratidão nesta hora? Pela razão? Nem pensar. Pela contabilização entre sucessos e derrotas? Menos ainda. Mas se eu pegasse esta mistura de situações boas e más e as colocasse aos pés daquele que eu julgo ter a consciência muito mais elevada do que a minha. Se eu juntasse este misto de certezas e dúvidas e entregasse nas mãos daquele em quem eu tenho depositado a minha fé, e confiasse completamente na sua providência, eu não encontraria alguma razão para ser grato por tudo isso? Será que eu não poderia dar um respiro aliviado e dizer que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a Deus? Para o bem da verdade, tenho que dizer que não sei. Mas uma coisa tenho certeza, só saberei o dia que realmente, de corpo e alma, eu tentar.

Sou muito grato àqueles e àquelas que, apesar de terem lido o que escrevi, ainda me de desejam um feliz aniversário.

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