O último guialeigo de plantão

Selo do Dia do Trabalho 1956
Por mais estranho que possa parecer aos olhos da modernidade, não faz muito tempo havia em algumas igrejas um cargo que era praticamente vitalício e cujo turno de trabalho era de vinte e quatro horas, de domingo a domingo. Mais estranho ainda era o fato de que este cargo que exigia que o postulante tivesse conduta ilibada, notável conhecimento bíblico, experiência de trabalho em equipe, fosse amável, que soubesse respeitar e que impusesse respeito pelo carisma próprio, e não pela força ou poder inerente ao cargo. Que fosse pai, amigo, conselheiro e, sobre tudo, compreensivo, muito compreensivo. Não era um trabalho remunerado, pelo contrário, ainda constrangia a quem o ocupasse a fazer colaborações extraordinárias. Somente poderia ser exercido por alguém que estivesse disposto a largar tudo, inclusive seus encargos seculares e muitas vezes a sua família, para atender os apelos que sua função na igreja exigia fosse que horas fosse. Esta função visava unicamente o bem da comunidade, mas  preservava a figura pastoral, chamando para si muitas de suas responsabilidades. Enfim, constituía-se no último bastião da doutrina e da disciplina da igreja, além de ser a sua reserva moral.

Embora pareça a biografia de um super-herói das histórias em quadrinhos ou a ficha pregressa de um secretário geral da ONU, não é. Estamos falando de um personagem tão próximo da lembrança quanto do coração daqueles que andam por aqui há mais tempo. Estamos falando do que na Igreja Metodista chamávamos de guialeigo, o personagem que nesse primeiro de maio, dia do Trabalhador, eu gostaria de homenagear, e gostaria de fazê-lo através da figura de José Jorge de Carvalho, o meu último guialeigo de plantão. Um paraibano de voz firme, afinadíssima e que conseguia alcançar os tons mais altos da escala, foi carinhosamente apelidado de “Patativa de Cabedelo”, não somente pelo seu dom natural, mas principalmente por estar sempre à frente de todo e qualquer empreendimento musical, em um tempo em que a minha igreja local era nacionalmente reconhecida pela excelência de seus vários corais. Mas a música era apenas uma face da versátil atividade deste grande herói da fé.

O Zé, mesmo na meia idade era plenamente capaz de sair de uma animada pelada com a garotada, diretamente para a reunião da junta de ecônomos, que era o organismo de maior poder de decisão no contexto local das igrejas metodistas. As portas da sua casa estavam permanentemente abertas, assim como a mesa do café, do almoço, do jantar e do lanche rapidinho estava sempre posta para todos nós, os penetras. Nos quartos havia camas extras, cuja ocupação e acolhida não exigia tempo de casa, parentesco, dia ou hora. Todos eram sempre bem-vindos. A hospitalidade era também mais uma face deste fiel servo de Deus. Professor incansável da Escola Dominical em todas as classe e idades. Amante inveterado do trabalho de evangelização na praça, onde era pregador, carregador de som e puxador dos hinos. Visitador constante de hospitais e presídios, atuou em várias peças teatrais, além de ser chefe de torcida, garçom, pedreiro e pintor.

Pau pra toda obra, e que grandes obras. Ao lado de Hiltom Campante, foi um dos grandes idealizadores e construtores de um prédio de quatro andares, chamado inicialmente de Edifício Educacional, como também da quadra de esportes, que Deus lhe concedeu a bênção de ver coberta, o que era um antigo sonho. Praticamente com recursos próprios, em uma fase financeira que lhe era pouco favorável, comprou um piano de calda, já o órgão eletrônico foi um capítulo à parte. Não somente colaborou financeiramente com o maior percentual na compra, como mobilizou todo o pessoal de seu escritório de despachante aduaneiro para importá-lo sem qualquer ônus para a igreja. Mas o desprendimento era também apenas mais uma face deste gigante de baixa estatura.

José Jorge morreu e foi sepultado distante de nós. Já há algum tempo, por razões absurdas e mesquinhas, já não frequentava mais a Igreja Metodista, mas o vazio deixado por ele, por sua esposa e seus filhos jamais foi preenchido. Na igreja restaram apenas sua nora e sua neta, membros ativos e eficazes.

Permita Deus que saibamos sempre reconhecer e valorizar estes heróis de dupla jornada, que são atuantes na igreja assim como são nos seus trabalhos seculares. Permita também que este tênue fio que ainda persiste em nos ligar ao passado orgulhoso dos nossos heróis não se rompa de vez, impedindo que a memória de guiasleigos de vinte e quatro horas, como José Jorge de Carvalho, emergindo do passado, venha a nos desafiar a sermos melhores homens, melhores mulheres, melhores cristãos e melhores trabalhadores.

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