Quem verá o Reino de Deus?

João em Patmos de Bosch (1450-1516)
Dizia-lhes ainda: Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o Reino de Deus. Marcos 9.1

Pedro havia anunciado Jesus como o Messias. Jesus, por sua vez, imediatamente expõe com clareza inquestionável as implicações desta revelação. Jesus se coloca no contexto histórico daqueles que antes dele ousaram fazer algo semelhante, assim como aconteceu aos profetas no passado e recentemente a João Batista. Não parece haver qualquer contestação da inevitabilidade dos fatos nessa linha de raciocínio. Pelo menos nenhum dos citados havia sobrevivido para desmenti-la. Contudo, Pedro não teria que aceitá-la como uma consequência natural. Não poderia não tentar evitá-las. Mas ser chamado de desvirtuador de propósitos, tentador e Satanás por isso, é um pouco além da conta. Mas esse absurdo que começou restrito a um grupo, logo vai se tornar público, e Jesus se aproveita para descer a pormenores: Se alguém quer vir após mim, esqueça os seus interesses pessoais e esteja pronto a morrer, assim como eu estou pronto. Quem cuida dos próprios interesses jamais terá vida verdadeira, e de que adianta ganhar o mundo e perder a própria vida? Nessa época de incredulidade e maldade, se alguém negar, omitir ou mesmo se envergonhar dessa verdade, quando vier a glória na plenitude dos tempos, Deus também o negará, se omitirá e se envergonhará dele.

Até então era somente uma pregação inflamada, um discurso poderoso e recheado de ameaças e incertezas que nem mesmo seus seguidores mais fiéis entenderam como, quando e onde essas palavras seriam realidade. E é justamente no auge dúvida que Jesus põe termo a questão quando diz que muitos dos que ali estavam não morreriam se testemunhar o Reino de Deus chegando com poder e glória. Ou seja: o onde é aqui, o quando é agora e o como, verão aqueles ainda que estiverem vivos.

Temos elementos variados aqui: Jesus é o Messias, mas vai sofrer por isso, porque, segundo ele, o Reino de Deus se estabelece negando a situação vigente em grande conflito de interesses. Não se vence esse jogo de interesses estabelecidos com mudanças gradativas e homeopáticas ou pela boa vontade dos homens. Jesus assegura que teria que haver uma intervenção drástica de Deus na história para que mudanças imediatas e radicais acontecessem, e isso não se daria de forma alguma sem que aquela geração passasse, sem que muitos dos presentes vislumbrassem essa chegada portentosa do Reino de Deus. Em contrapartida, para o judeu da época não poderia haver melhor momento para que o Messias fosse revelado. Ver toda uma expectativa milenar se consolidando. Ver os interesses do povo judeu sendo resgatados, a hegemonia de Israel restabelecida, os inimigos derrotados e humilhados, como diz a propaganda: não tem preço. Afinal, o consenso dizia que o Messias viria pra isso. Se ele tivesse que sofrer ou mesmo morrer nesta empreitada, que assim fosse.

Reconsiderando a atitude de Pedro. Como alguém pode colocar os seus interessas pessoais e deixar aflorar dos seus desejos mais íntimos quando o futuro de uma nação e a sobrevivência de um povo está ameaçada. Pedro não queria que Jesus morresse porque ele era seu amigo, tinha curado a sua sogra, tinha dado a ele uma excelente pescaria, salvou-o quando estava se afogando, tinha se transfigurado diante dos seus olhos. Um homem desse não pode morrer. Mas o povo pensava diferente. Jesus tinha que morrer pelo interesse de muitos. Israel estava sob uma terrível ameaça, e Deus tinha que tomar uma providência. O sumo sacerdote Caifás já tinha dito que era melhor que morresse um só homem do que a nação inteira. Quem estava torcendo por Pedro e vê o desenrolar dos fatos, fica imaginando que a opinião do povo prevaleceu, embora Deus tivesse que dar ouvidos às súplicas de Pedro.

Mas no final da história, quem foram aqueles que viram o Reino de Deus chegar? Quem de fato esteve presente a este fenômeno escatológico? Os que, como Pedro, se comoveram de piedade em ver Jesus padecendo, ou os que valorizaram a sua morte como a de um herói nacional? Quem, no entender de Jesus, estava apto a ver o Reino de Deus chegar? É interessante se observar que passados quase dois mil anos esses dois grupos continuam ativos e presentes na vida da igreja. Se existem aqueles que ainda hoje tentam sentir na pele o sofrimento de Cristo, também existem os que pensam que ele morreu pelos seus interesses pessoais, quando muito da sua igreja, e talvez até da sua denominação. Também existem aqueles que afirmam categoricamente que não morrerão enquanto não testemunhar Jesus voltando um sua glória plena. Dizem que não dá mais para esperar, pois o sofrimento de viver na atual situação está ficando insuportável. Dizem que o tempo atual supera em maldade e descrença a todos os outros períodos da história. Não quero fechar questão sobre esse tema, mas se for realmente assim, se o Reino, que já é chegado, se tornar pleno pelos anseios dessa nossa geração, Deus vai ter muito o que explicar para aqueles que morreram nas arenas romanas, para os mortos nas cruzadas, no holocausto, na peste negra, na colonização das Américas. Eles vão, com justa razão, querer saber o porquê de muitos de nós profetizarmos a volta de Jesus justamente para agora, um tempo em que a perseguição à igreja é quase que imperceptível, em que a morte dos mártires pode ser contada, em que a liberdade religiosa não é mais uma luta de um grupo específico e sim um clamor mundial.

Em nenhum lugar a nossa história registra uma intervenção visível de Deus ou de algum ser divino ou demoníaco. Muito embora cremos que Deus em Jesus irrompe a história humana, ele o faz sem que deste fato se tenha um registro documental inquestionável, mas que só é perceptível por meio da fé. Paulo, quando narra o nascimento de Jesus em Gálatas 4,4, diz somente: na plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei. Não pode haver nada mais comum do que alguém que tenha nascido sob esses preceitos: nascer de mulher, nascer sob a lei. Então, se vivemos num tempo comum, como alguém pode esperar o que há de mais incomum chegar simplesmente atraído pelos fatos do cotidiano?

Para ver o Reino de Deus chegar em sua glória é preciso entender a morte de Jesus como algo maior que os interesses pessoais, de um grupo ou mesmo de uma nação inteira. É preciso ver a sua morte como o próprio Jesus a via, como o momento decisivo de um plano arquitetado por Deus desde a fundação dos séculos. A morte e a ressurreição de Jesus não se deram apenas em uma Páscoa do passado. Elas se dão a cada momento em que eu e você tomamos atitudes concretas em favor desse Reino. É mais do que certo que este Reino chegará. Em vez de perguntarmos quando, como e onde, deveríamos nos perguntar se nós seremos dignos de vê-lo chegar. Se não propriamente com os nossos olhos, pelo menos através dos olhos de uma geração que possa enxergar, através do nosso testemunho, mais claramente o verdadeiro sentido da morte de Cristo.

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