Eis meu servo

O Calvário, Girolamo Romani (1485-1566)
Leia Isaías 42 1-9

No primeiro dos quatro cânticos dedicados ao servo sofredor de Deus, Isaías faz uma apresentação muito sucinta do que realmente vem a ser este servo e do seu propósito. Praticamente nada fala sobre a sua trajetória, que seria indelevelmente marcada pela perda e pelo sofrimento. Mas uma coisa fica clara de antemão: Isaías não está falando de um servo qualquer, do tipo de pessoa que conhecemos bem. Aquele tipo que arroga para si uma postura piedosa, no mau sentido da palavra, e se anuncia como sendo apenas um humilde servo ou serva do Senhor.

Também não é apresentado como alguém que recebeu de Deus um chamado para ser seu profeta, posto que a resposta que este servo deu ao chamado de Deus em nada se assemelhou a que um profeta antes dele, nem mesmo após, houvesse dado. Indistintamente todos os profetas negaram o seu chamado, rebelaram-se contra Deus, acharam-se inadequados para a missão e tentaram esquivar-se de todas as formas, apresentando todas as justificativas cabíveis e imagináveis. Mesmo aqueles que a princípio, de forma corajosa, se apresentaram solícitos, como fez o próprio Isaías através do seu conhecido chavão: eis-me aqui, envia-me a mim, ao se inteirarem do peso e das consequências da missão, recuaram imediatamente, da mesma forma que este profeta logo em seguida, de uma forma ou de outra, disseram: até quando Senhor.

Quando me deparo com textos como este entendo cada vez menos esta proliferação de pessoas que hoje se anunciam como profetas. Não entendo como um encargo tão penoso, que encerra uma responsabilidade infinita, não oferece qualquer benefício aparente, da mesma forma que não dá qualquer garantia de sucesso, pode ser recebido com o sorriso da pretensão orgulhosa. Mas isto foi apenas um parêntese.

É questão básica que não devemos omitir o fato de que os capítulos de 40 a 55 do livro que leva o nome do profeta Isaías foi escrito pelo que é conhecido pelos estudiosos como o dêutero Isaías ou segundo Isaías. Aquele que prega para uma nação dividida, oprimida e sem quaisquer perspectivas de liberdade dos calabouços do exílio babilônico. Povo para o qual a mínima esperança de intervenção de um Messias salvador se fazia urgente. O povo judeu todo, no melhor estilo de Jó, em profundos lamentos fazia para si repetidamente a mesma pergunta: Porque nós, que somos povo de Deus, chamados por ele, que clamamos pelo seu Nome, estamos sofrendo todas essas aflições? Aqueles que eram a terceira geração de exilados, que nunca tiveram qualquer participação ativa nas iniquidades e injustiças que seus pais e avós cometeram, estavam questionando o amor de Deus, e a aliança prometida por ele. Visando esse povo sofrido e humilhado, Deus intervém de forma inusitada, porém aparentemente inócua. Deus promove um servo pacífico, carismático e obediente ao cargo para o qual não se podia esperar nada menos do que um habilidoso guerreiro.

Quem conheceu a intervenção de Deus na escravidão egípcia não poderia se surpreender caso este servo não fosse mais do que Moisés: um gago e velho foragido. Este em quem repousa o Espírito Santo vai implantar o juízo e o direito segundo a rígida vontade de Deus. Mas não o fará pelo poder das armas, mas com a mansidão de alguém que mal consegue se firmar sobre os próprios pés, tamanha a sua fraqueza. Muito embora vacilante, o servo terá persistência para resistir aos opositores, e dará, ao final, cabo da sua missão.  O SENHOR Deus diz: Aqui está o meu servo, a quem eu fortaleço, o meu escolhido, que dá muita alegria ao meu coração. Pus nele o meu Espírito, e ele anunciará a minha vontade a todos os povos. Não gritará, não clamará, não fará discursos nas ruas. Não esmagará um galho que está quebrado, nem apagará a luz que já está fraca. Com toda a dedicação, ele anunciará a minha vontade. Não se cansará, nem desanimará, mas continuará firme até que todos aceitem a minha vontade. As nações distantes estão esperando para receber os seus ensinamentos (Is 42-1-4).

Não consigo distinguir nessas palavras qualquer referência a um credo específico, nem qualquer ênfase sobre uma denominação, muito menos que o seu foco esteja sobre qualquer religião. Onde muitos viam, e ainda veem o demônio do ecumenismo, Francisco de Assis via a bênção do diálogo inter religioso. O servo sofredor de Deus não pergunta qual era a religião dos magos, não distingue os pastores pela sua condição social, não averigua o status celestial dos anjos. Aquele que em torno de si há de reunir todas as religiões, todas as classe sociais, todos os títulos religiosos, homens e anjos, reis e pastores, pessoas e animais, céus e terra.

Vinicius de Moraes é autor de uma poesia chamada Mensagem à Poesia, que traduz um bilhete de um rapaz à sua namorada, com quem não vai poder se encontrar naquele dia. Bem no seu final ele diz o seguinte:
Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem uma pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...

Celebremos mais uma Páscoa com cânticos de lamento e hinos de exaltação. Mas não nos esqueçamos do quanto o servo de Deus é chamado a se perder de amor por seu semelhante, para que não venhamos a tornar a sua perda menos doce ainda.

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