Ceia em Emaús, Velázquez (1599-1660) |
um lugar e simplesmente desaparecia para aparecer em outro. Especula-se
também de como era o seu corpo, de que matéria era feito. Da mesma forma especula-se
a respeito da sua imagem, com quem ele se assemelhava, qual era a sua
aparência. Uma hora foi confundido como um coveiro, outra, como no texto acima,
como um viajante comum, ou ainda como um pescador à beira do mar. Mas a única
coisa que se pode dizer com razoável certeza: Jesus era o mesmo de sempre, com
os traços fisionômicos exatamente iguais como era antes da sua morte. Só que
agora, livre da carga emocional, das agonias e das preocupações que o
acompanharam durante o seu ministério terreno. Apenas a mudança do seu estado
emocional foi suficiente para que sua aparência se transmutasse o bastante para
que não fosse reconhecido de imediato. Acontece conosco coisa semelhante quando
tiramos dos ombros o peso de uma grande preocupação, não somente as pessoas
notam a nossa mudança, mas como nós mesmos nos sentimos diferentes.
Após a ressurreição as pessoas reconheceram Jesus não o
fizeram pela associação à sua imagem anterior, mas sempre por um detalhe em
particular: pela maneira como falava com as pessoas, como foi o caso de Maria
Madalena, ou por uma atitude que lhe era peculiar, como o partir do pão diante
dos discípulos de Emaús. Somente após identificá-lo por algum detalhe é que
elas passavam a conciliar a sua nova aparência com a pessoa que lhes fora tão
familiar. Mas saindo do terreno da especulação, percebemos que o principal
motivo das suas aparições não foi para mostrar o seu novo visual, nem provar para
as pessoas que o crucificaram que elas estavam erradas, mas sim para ensinar aqueles
que estiveram junto dele a importância de se dar continuidade à caminhada da fé.
Os discípulos no caminho de Emaús, na verdade, estão representando todos os
discípulos em todos os tempos e em todos os caminhos. Simbolizam o que todos os
discípulos que precisam aprender: coisas importantes e urgentes que ainda não
sabem.
A primeira lição que se pode tirar da caminhada dos
discípulos de Emaús, é que, diferentemente da caminhada de Jesus que começou na
periferia e foi para Jerusalém, estes discípulos estavam caminhando no sentido
oposto. Isto é, indo de Jerusalém para a periferia. A princípio parece um mero
detalhe sem importância, afinal, foi o próprio Jesus quem ordenou que o seu
evangelho fosse pregado em todos os lugares, em Jerusalém, Judeia, Samaria e
até em Portugal, ou seja, nos confins da terra. Mas este pequeno detalhe possui
implicações tremendas. A periferia foi o lugar onde Jesus foi exaltado e onde viveu
os seus grandes momentos. Foi lá que por mais de uma vez tentaram fazê-lo rei.
Na periferia aconteceram os seus grandes milagres e a sua glória atingiu o
clímax, basta lembrar que a transfiguração, o caminhar sobre as águas e acalmar
a tormenta do mar também aconteceram na periferia. Jerusalém representava o oposto
de tudo isso. Jerusalém era o caminho que levava ao descrédito, à humilhação, à
perseguição, ao sofrimento e, inevitavelmente, à morte.
Quando decidiu pela mudança de itinerário, ou seja, quando
ele tomou a decisão de ir para Jerusalém, seu rosto endureceu, ficou como
rígido como uma pederneira, e é bem provável que esta imagem embrutecida pela
amargura e pela apreensão fosse a imagem que permaneceu na mente de todos. Foi
uma decisão causou um grande mal estar entre os discípulos a ponto de alguns o
abandonarem e outros tentarem de todas as formas dissuadi-lo desta decisão.
Expuseram Jesus a uma tentação tão grande, que ele teve que rejeitar Pedro como
quem rejeita o próprio Diabo. Afasta-te
de mim Satanás, porque cogitas das coisas dos homens e não das de Deus.
Quando disse que os discípulos de Emaús representavam todos
os discípulos em todos os tempos, estava falando justamente isso, que hoje, a
exemplo daqueles discípulos, nós estamos preferencialmente trilhando o caminho
que leva à glória, ao reconhecimento e à segurança. Sofrimento, dor, humilhação
ficaram lá atrás no passado, quando muito na nossa conversão. Naquele dia em
que chegamos aos pés de Cristo completamente arrasados. Depois de convertidos, nem
pensar, agora é só felicidade. Mas deixe-me perguntar uma coisa: a vida é
assim? Será que podemos afirmar em todos os momentos que todas as coisas
concorrem para o bem dos que amam a Deus? Será que as coisas boas sempre
acontecem às pessoas boas e as ruins aos maus? Não precisamos ir longe, o livro
de Jó diz claramente que a vida não é tão simples como querem nos fazer crer.
Existem muitas distorções que fogem a esta lógica. O próprio Jesus é quem mais endossou
as palavras Jó quando nos disse: No mundo
tereis aflições.
Mas talvez este desvio na rota não seja a principal falha do
momento. Esta ainda é uma atitude restrita, que diz respeito a cada um de nós.
Coisas piores do que estas acontecem, quando se arma uma tenda, aluga-se um
salão, coloca-se na fachada o nome de uma igreja, anuncia-se ao mundo que ela é
de Jesus. Isso com intuito de atrair pessoas afirmando que ali encontrarão o
caminho que leva ao céu repleto de felicidade, que nunca mais iremos sofrer e
que todos vamos permanecer indefinidamente lindos, ricos e saudáveis até o
final dos tempos.
Antigamente toda casa evangélica tinha um quadro que representava
o texto bíblico dos dois caminhos: o caminho largo e o caminho estreito. O
caminho da perdição e o da salvação. Para os mais fundamentalistas: o caminho
dos católicos e o caminho dos crentes. A minha bronca, quando olhava aquele
quadro, é que as todas as coisas boas estavam do lado dos católicos, nunca do lado
de cá. Não se podia ir ao cinema, ao Maracanã, em alguns lugares não se podia
nem tomar sorvete aos domingos. Talvez fosse porque naquela época o empenho da
igreja consistia em estreitar o caminho muito além do ponto que Deus já havia
estreitado, colocando dificuldades extras para a caminhada da fé. Mas hoje é
completamente diferente, hoje em dia o lado de cá pode fazer cada coisa que até
o Diabo duvida. O caminho da salvação ficou tão largo que causa inveja até
mesmo ao caminho largo do quadro.
Se transportarmos este pensamento e fizermos a relação com o
caminho trilhado por Jesus e o caminho dos discípulos de Emaús, veremos que é
muito mais fácil e bem menos perigoso ficar anunciando curas, milagres e
libertação na periferia do que investir contra a sede do governo exigindo hospitais
e médicos que curem as nossas doenças físicas. Exigir o milagre da honestidade
no uso do dinheiro público e na economia do país e libertação definitiva desta
precária condição de vida. Eu posso garantir que a grande maioria dos
“milagres” de hoje, não seriam necessários, e que as igrejas seriam mais frequentadas
por gente agradecida do que por suplicantes.
Jesus mandou que se pregasse o evangelho a toda criatura.
Quem está pensando assim tem absoluta razão. Mas quando observamos o seu
ministério, constatamos que além de suas palavras o seu objetivo verdadeiro, o
seu maior investimento, a sua maior concentração de esforços era Jerusalém, o
centro do poder e das decisões. Era onde, como se dizia antigamente, onde a
cobra estava fumando. Hoje seria onde a chapa está esquentando.
Aceitar Jesus como Senhor e Salvador, implica em aspectos de
transformação moral e de valores, mas também implica que tomar decisões
difíceis e potencialmente trágicas. Quando aquele jovem mostrou disposição em
segui-lo onde quer que ele fosse, Jesus o desfiou: As aves do céu tem seus ninhos, as raposas tem seus covis. Mas o Filho
do Homem não tem onde reclinar a cabeça. Isso não é de forma alguma um
elogio à pobreza. Jesus não estava dizendo que não tinha onde cair morto, pois
ele tinha. Além da cruz, ele tinha também uma casa em Cafarnaum. E, é claro, os
lugares por onde havia deixado muita gente agradecida por ter sido curada e até
mesmo ressuscitada por ele. O que ele estava dizendo é que ele tinha hora para
sair, mas não tinha hora para voltar. Que ele tinha muita certeza de que ia,
mas nenhuma de que voltaria. De que ele ia para o incerto, sem garantia de
coisa alguma. Nenhum conforto material ou mesmo espiritual. Eu vou tomar o caminho do enfrentamento. Eu
vou para o centro da crise. Para onde a cobra fuma, para onde a chapa esquenta.
É
isso mesmo que você quer para a sua vida, perguntou ele
ao jovem? Se Jesus tivesse feito como os discípulos de Emaús, isto é, tomado o
caminho de Jerusalém para a periferia, não teria passado pelo que passou, teria
sido eleito rei dos reis, teria curado uma infinidade de doenças, não teria
sido pregado numa cruz, mas também não teria salvado o mundo.
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