A paixão de Cristo e as nossas paixões

Jesus Carrega a Cruz, Polônia século XV
Estamos prestes a celebrar uma das datas mais significativas da cristandade, a Semana Santa. O que esta data significa para nós? Que interpretações fazemos hoje dos fatos cruciais deste acontecimento? Que tipo de sentimento devemos experimentar? Que tipo de sensações devemos ter diante desta intervenção de Deus em nossa história? Uma coisa podemos observar com relativa certeza, a maioria das respostas que o nosso povo dá a estas perguntas baseia-se em resquícios de uma tradição medieval supersticiosa, em experiências extraídas de filosofias pagãs e heresias cristãs ou ainda de concepções holiwoodianas do tipo Jesus de Nazaré de Zefirelli ou da Paixão de Cristo segundo Mel Gibson.


A uma reflexão pessoal sobre a verdade bíblica que, em última análise, é o único depoimento a ser considerado para a apuração da realidade dos fatos, poucos se dão ao trabalho. Porém, temos que reconhecer que algumas considerações precisam ser feitas para que a verdade bíblica floresça, e dê sentido ao propósito, à ação e ao resultado dos acontecimentos desta semana chamada de Santa.

Em primeiro lugar, sempre existiram e sempre existirão aqueles que consideram Jesus um semideus revestido de total invulnerabilidade e isenção das fraquezas humanas. Dizem eles: Jesus nada sofreu, porque não era formado da mesma matéria que nós humanos e, portanto, não estava sujeito às leis naturais que nos são impostas. Mas não é isso que nos diz o texto bíblico. Ao relatar os momentos que antecederam à prisão de Cristo, a Bíblia é precisa em traduzir a sua agonia e o seu estresse emocional em uma anomalia do metabolismo humano, que até há pouco tempo era tida como um milagre fantasioso de um ser superior, mas que a medicina moderna considera o suar sangue perfeitamente possível em pessoas submetidas ao estresse máximo. Realmente Jesus tinha conhecimento daquilo que o esperava em virtude das suas atitudes anteriores, e sua reação no Getsêmani é uma prova irrefutável da condição humana sob a qual viveu entre nós.

Também existem e sempre existirão aqueles que movidos por uma piedade não requerida, não somente intercedem por Cristo diante de Deus, mas se oferecem para tomar sobre si os flagelos, na intenção de aliviar o sofrimento de Cristo daquela hora fatal. A ideia por trás destas manifestações é que sofrendo voluntariamente com Cristo, não somente aliviamos a sua dor, como também conquistamos os méritos pessoais que quase se equivalem ao sacrifício de Cristo. Há várias contradições dos princípios bíblicos nesta intenção. Primeiramente, não existe nada que possamos fazer hoje que consiga alterar a imutabilidade da história passada. Esta é uma regra básica que não somente se aplica a nós humanos, o próprio Deus também sujeitou-se a ela. Nem mesmo Deus pode fazer com que o fato, de repente, deixe de ter acontecido. O que nos é exigido, não é mudar o passado, mas sim corrigir, sempre que possível, as suas consequências. Eu não posso mudar o que aconteceu há dois mil anos atrás naquele obscuro recanto do império romano, mas eu posso responder positivamente ao apelo do amor de Deus na infame cruz e transformar a situação a minha volta, tornando o mundo um pouco melhor.

Outro princípio bíblico aviltado nesta intenção está relacionado ao testemunho de Isaías: Pelas suas pisaduras é que fomos curados. O crente em Jesus Cristo somente pode ter diante da sua paixão duas posições: um sentimento de profunda gratidão pelo incomensurável e imerecido amor ali demonstrado, e a certeza de que nenhuma outra coisa tem o poder de nos curar da doença do pecado que leva inevitavelmente à morte. A paixão de Cristo não pode ser de forma alguma aplacada ou mesmo compartilhada, mas deve ser proclamada a plenos pulmões, porque foi exclusivamente por meio dela que todos estamos perdoados e nada devemos à escravidão, ao vício, ao egoísmo ou à superstição. Às vezes eu me pergunto: Por que justamente eu, que não sou apenas servo, mas um servo inútil e sem qualquer valor.

Mas ainda há outro sentimento que a paixão de Cristo desperta nas pessoas. A revolta contra Deus, o Pai. As perguntas que sempre ecoam são: Por que Deus permitiu que Jesus sofresse tanto? Por que não interrompeu o flagelo de seu filho com seu poder? Como pôde ser insensível e distante diante de tamanha dor? Todas estas questões dizem respeito a apenas uma coisa: à distância que impomos a Deus. Para muitos, Deus continua sendo aquele barbudo sisudo e impassível que fica à nossa espreita pronto para nos castigar ao menor deslize do nosso caráter, quando não passa de o olho inquisidor sem pálpebra, que nunca fecha. Não faz muito tempo que em nossas igrejas incutíamos em nossas crianças corinhos terríveis como: Cuidado mãozinha no que pega. Cuidado olhinho no que vê. Cuidado boquinha no que fala. O salvador do Céu está olhando pra você. Cuidado olho, boca, mão e pé. Este Deus, realmente não tem a menor chance de ser sensibilizado. Dele não se pode esperar qualquer forma de compaixão, dele esperamos somente o juízo. Nunca escaparemos de sentir o peso da sua mão, pois sua real intenção é a nossa condenação. Mas esta é uma imagem de Deus está completamente destituída do amor de Cristo. Ela foi completamente desfigurada por aquele que subiu ao Céu amando os seus até as últimas consequências e perdoando a todos que o haviam ofendido.

Existem também aqueles que pregam um Jesus desesperado na cruz, gritando sem parar: Pai, por que me abandonaste? Creem nisso baseados no afastamento circunstancial de Deus, porque, naquela hora, o pecado do mundo estava sobre os ombros do condenado impedia qualquer comunhão com Deus. Mas se dão conta de que Jesus caminhava para a cruz cantando os salmo 22 e 30, que são hinos de louvor de louvor e confiança.

Eu louvo a Deus pela mente de Paulo, o apóstolo, que mesmo sem ser testemunha ocular dos fatos, enxergou uma paixão bem distinta desta que bem conhecemos. Paulo não considerou derrota ou perda, mas sim um ganho inquestionável. Paulo, com sua visão além do imediato, vê Jesus sendo açoitado e pergunta: Onde está, oh morte, a tua vitória? Vê Jesus agonizando e questiona: Onde está, oh inferno, o teu poder de destruição? E quando Jesus finalmente morre, Paulo grita jubiloso: Tragada foi a morte pela vitória!

Paulo também foi capaz de enxergar um Deus diferente. Este, contudo, nada frio e distante. Após acompanhar cada passo, cada ato e cada propósito deste outro Deus, ele pode afirmar com toda sua convicção que, principalmente nas horas de extrema agonia, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. Quando Jesus era humilhado, Deus estava com ele. Quando Jesus foi cuspido, Deus estava com ele. Quando Jesus pregado na cruz, Deus estava com ele. Tudo isso por você, por mim e por todos aqueles que mesmo sem tomarem ciência, são igualmente alcançados, curados e resgatados, e cujos pecados estão eternamente pregados naquela cruz, que, não somente esta semana chamada de Santa, mas para todo o sempre.

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