Discípulos de Emaús (final)

Ressurreição de Grünewald (1470-1528)

A segunda lição dada ali também é bem típica. Diferentemente do que fazemos em nossas campanhas evangelísticas, quando saímos por aí a falar pelos cotovelos, Jesus aproximou-se dos discípulos para ouvir. Estou falando discípulos, porque o artigo é masculino, mas existem teólogos renomados que afirmam categoricamente ser um casal e não dois homens como costumamos pensar. Isto é, tínhamos ali um casal, uma igreja completa. Então, para esta igreja composta de homens e mulheres Jesus tinha expectativas, não somente quis saber sobre o assunto, mas também qual era o mal que os afligia. Sobre o que vocês estão falando? Por que estão tão tristes?

Uma madrugada dessas eu vi um “teólogo” no programa do Jô Soares que afirmava ser Jesus um grande gozador. Ele dizia isso baseado unicamente nas conversas que Jesus teve com os deficientes que curou. Ele chegou à conclusão que Jesus estava sendo irônico quando perguntava: o que queres que eu te faça? Afinal de contas, o que pode querer um cego? O que pode querer um coxo? Esta foi a conclusão idiota que dois idiotas chegaram, mediante a idiotice que estavam conversando. Eles não fazem a menor ideia de que Deus não violenta as pessoas, que Deus nunca impõe a sua vontade sobre a nossa. Nem obriga ninguém a amá-lo ou sequer a crer que ele existe. Eis que estou à porta e bato. Deus não arromba, não mete o pé na porta e nem faz uso de uma chave mestra. Ele simplesmente bate. As pessoas que cultuam o Deus dos Impossíveis deveriam olhar este versículo. Ele traz uma das coisas que Deus não pode fazer. Ele não pode violar a nossa vontade e não pode ir contra o seu critério de livre arbítrio. Existem muitos corações em que ele não pode entrar.

Jesus no caminho de Emaús mostra claramente como se prega o evangelho. Quando somente ele tinha algo a dizer sobre o seu martírio, morte e ressurreição, parou para ouvir o que os discípulos tinham a dizer. Logo esses dois, que não sabiam absolutamente nada sobre o que realmente aconteceu. Jesus sabe muito bem que na grande maioria das vezes que o que nós queremos, não é exatamente o que nós precisamos. Jesus não curou de imediato o aleijado. Ele disse: os teus pecados estão perdoados. Ele sabia que o que de fato atormentava àquele homem não era propriamente a deficiência física, mas a deficiência espiritual por se achar um pecador indigno de atrair para si a atenção de Deus. O verdadeiro mal nem sempre não é aparente. Os psicólogos modernos já aprenderam a ler o que nós queremos dizer de fato com aquilo que dizemos.

Assim como aleijado, quem de nós não gostaria de apagar definitivamente os fantasmas do passado e esquecer de vez aquelas lembranças de pecados que, mesmo perdoados, voltam a nos atormentar? Como seria bom ouvir do próprio Jesus os teus pecados estão perdoados. Foi por achá-los nesta condição que fez com que Jesus se aproximasse dos discípulos para ouvi-los. Foi esta a estratégia que ele usou para conseguir uma abordagem de sucesso. Essa é uma lição para quem pensa em ser testemunha de Jesus. Os seminários ensinam a ciência da oratória através de uma disciplina chamada homilética e é uma das matérias em que os alunos mais se aplicam. Todo mundo quer falar bem. Mas os seminários deveriam ensinar antes a ciência da “escutatória” para fazê-los ouvir antes de falar. Primeiramente ouvir bem para aí sim pregar o evangelho, se preciso for, até com palavras, como disse Francisco de Assis.

A maneira simplória com que Jesus se aproximou foi uma coisa tão nova para os discípulos que eles pararam extasiados. Está todo mundo falando, dando opinião, tirando conclusões, só você que não tem nada pra dizer? Você é o único que ignora essas coisas? Aqueles pobres coitados da história são exatamente como nós hoje. Ainda não percebemos que a pregação da mensagem da ressurreição se deu com atitudes, com decisão, com comprometimento e não com palavras. Jesus não chegou no meio do povo e disse: olha eu aqui de novo. Ele não se valeu da sua ressurreição com argumento para convencer quem quer que fosse. Não fez da sua vitória sobre a morte um espetáculo pirotécnico para atrair pessoas à conversão. O mais curioso disso tudo é que, para aqueles discípulos, a ressurreição já havia sido pregada por palavras. Eles já tinham ouvido a mensagem que anunciava a ressurreição, mas mesmo assim eles não acreditaram no que lhes foi dito. Eles disseram para Jesus: Têm umas mulheres aí, umas doidas, dizendo que ele ressuscitou, mas ninguém acreditou nelas. Fomos lá e não vimos nada de ressurreição. Que as mulheres não pensem que estou inventando esta situação, o texto fala no versículo 11 que as mulheres tiveram um desvario, por isso não creram nelas.

A palavra já está muito desgastada. O próprio nome de Deus hoje está muito vulgarizado. Deus é artilheiro que faz golaços de um lado e o goleiro que faz defesas milagrosas do outro. Não sei como aguenta tamanha carga. Tinha uma música antiga que já denunciava isso: tudo que se faz na terra, se coloca Deus no meio. Deus já deve estar de “estômago” cheio. O terceiro mandamento já está mais do que esquecido. E é aí que entra a atitude concreta, a ação positiva, o socorro providencial de Jesus: escutar para saber de por começar. Para saber o que é preciso de fato. Estar no meio do povo, assim como Jesus esteve entre nós. Ser contado como qualquer um deles. Sujar as mãos, tocar leprosos e defuntos, deixar ser tocado por mulheres “imundas”, entrar na chuva e se molhar. Dietrich Bonhoeffer disse certa vez: Você deve falar mais com Jesus sobre o seu irmão, do que com o seu irmão sobre Jesus.

Mas não podemos parar por aí, existe ainda uma terceira lição que não somente complementa as anteriores, como dá sentido a todo o texto. É um fator tão importante, que sozinho pode fazer a diferença entre o que é de fato boa obra e todas as outras obras que ficam apenas no campo das boas intenções. De nada adiantaria concentrar a mensagem no foco da crise, ou mesmo vincular a prática cristã à necessidade do povo se o fundamento não estiver de acordo com o que dizem as Escrituras. Jesus, no momento oportuno confronta toda a conversa, tudo o que estava sendo tratado, tudo que havia sido dito com a Palavra de Deus. Quando Jesus abre a Bíblia vem à tona toda insensatez e falsa piedade dos discípulos. Eles estavam realmente tristes, tanto que sua tristeza era notória aos que passavam. Estavam tão indignados a ponto de chamarem um estranho que se aproximou de ignorante, simplesmente porque não partilhava das suas preocupações. Mas estavam tristes e decepcionados, porque estavam achando que haviam desperdiçado três anos de suas vidas seguindo o Messias errado. Nós pensávamos que era ele quem ia redimir Israel. Tudo isso aconteceu por um pequeno, mas decisivo detalhe: eles não conheciam as Escrituras.

Em que Jesus nós cremos? O que a maioria das igrejas prega ou no que os profetas anunciaram? Foi criada pelos discípulos uma expectativa enorme pelo que Jesus nunca se propusera a fazer. Imaginaram que ele ia derrotar os romanos e colocar Israel como uma nação hegemônica. Eu pensava que ele ia redimir Israel. Pensava que ele ia curar o meu pai, que ia me devolver o emprego, que ia me fazer ganhar a causa na justiça, mas ele não fez isso não. Foi tudo por água a baixo, foi tudo uma enorme perda de tempo. Quando os discípulos constataram que Jesus não cumprira com as “promessas”, que não era pra ele cumprir mesmo, ficaram tristes, indignados e decepcionados. Tudo porque confiaram no Messias das suas expectativas. O Messias que era somente o Leão de Judá e nunca o servo sofredor da Isaías. Se não tivermos muito claro na nossa mente que palavras de Jesus pregar, fatalmente vamos cometer dois erros: vamos quebrar a cara batendo contra as portas do Inferno ou vamos fazer discípulos mil vezes piores do que nós. Não sou eu que estou dizendo isso, são as únicas alternativas que as Escrituras oferecem.

Assim como leproso Naamã, nós estamos sempre procurando a manifestação de Deus nos milagres, no extraordinário, na resplandecência. Mas para aqueles discípulos não aconteceu nada disso. Jesus se revelou ao cair da tarde, no lusco-fusco como se dizia antigamente. Jesus não se revelou com atitudes de impacto, senão através de um ato simples que já havia feito por diversas vezes: o partir do pão. Quando percebermos que Jesus está nesta revelação ofuscada e não mais o buscarmos apenas nos milagres, o nosso coração irá arder, e aí nós vamos entender o plano de Deus nas Escrituras. Nesta mesma hora nós vamos nos levantar, esquecer o cansaço e tomar o caminho de volta. O caminho que leva ao confronto. E aí nós vamos deixar de amar somente a Jesus e passar a praticar o amor de Jesus. Vamos deixar de louvar somente a Jesus, e passarmos a louvar como Jesus louvava. Vamos deixar de ter fé somente em Jesus e passar a ter a fé que Jesus tinha e, somente assim, encarnando o ministério de Jesus por inteiro, a ressurreição se fará plena em nós.

Não pensem vocês que eu estou me achando um juiz na tribuna, pelo contrário, sou eu quem está sentado aí, no banco dos réus. Que me desculpe quem estiver me ouvindo, mas, antes do que para vocês, estou pregando pra mim. Estas são verdades, para mim, inquestionáveis. E como eu consigo relutar contra isso? Como eu ainda fujo do caminho? Como eu prefiro de falar, em vez de ouvir? Como eu ainda posso pensar errado a respeito do plano de Deus? Sabem o por quê disso? Tenho que confessar: lá no fundo eu gostaria que Jesus fosse como as igrejas pregam. Como eu gostaria que tudo fosse uma questão de acreditar. Seria tão bom ver os milagres acontecendo, as pessoas sendo curadas e a justiça sendo restabelecida. Mas a minha obrigação é dizer que não é simples assim. A ideia de milagre na Bíblia é completamente diferente da que temos hoje. Para os antigos, milagres não era um acontecimento extraordinário, nem era a quebra de uma lei fundamental da natureza. O verdadeiro milagre se dava quando Deus estava presente. Porque quando Deus está presente tudo pode acontecer, até o sobrenatural ou mesmo o milagre como imaginamos. Mas ainda que não aconteça nada, somente o fato de estar na sua presença nos fará reconhecer que um gesto simples, como o partir de um pão, venha a se tornar o milagre definitivo que irá mudar para sempre o rumo das nossas vidas.

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