Quasímodo, não quem, mas o quê?

Não estás longe do Reino de Deus. Mt 12,34
Lon Chaney em O Corcunda de Notre Dame - 1923
Ao procurar na net o significado de quasímodo não encontrei nada mais bem aceito pelo senso comum do que a resposta dada pelo Dicionário inFormal de Português: Quasímodo é o nome de uma personagem do livro Notre Dame de Paris, o famoso Corcunda de Notre Dame. “Portanto, em sentido figurado, este termo é usado para se designar uma pessoa deformada ou extremamente feia. Um mostrengo.” (José Luiz-SP) Quasímodo neste dicionário também significa homens na faixa entre 40 e 45 anos ou fisicamente desproporcionais.

Porém, nenhuma das respostas diz o real motivo pelo qual o personagem de Vitor Hugo recebeu este estranho nome. Uma análise rápida vai constatar que em quasímodo está contida uma palavra que tem sido tema de grande preocupação e prolongada meditação para a fé judaico-cristã há muito tempo: a palavra quase. O quase sempre foi um problema enorme para estes rígidos conceitos de fé, porque assim como hoje, o quase tem sido para gerações motivo de orgulho, motivo de satisfação pessoal e motivo de acomodação simplesmente pelo fato de se ter quase conseguido, se ter quase chegado ou quase realizado. O número 666, por exemplo para as pessoas do primeiro século tinha muito mais a ver com o quase do que propriamente com a pessoa do anti-Cristo.

João do Apocalipse diz que o anti-Cristo carrega consigo o número da besta, 666, fazendo uma clara alusão a Nero, o imperador que iniciou o flagelo dos cristãos. Este, por se considerar Deus e por governar como se realmente o fosse, é apontado por João como sendo o verdadeiro 666. Aquele que vai ao extremo da imperfeição, mas, por mais que tente, nunca conseguirá chegar à perfeição do 7, que para o judaísmo cabalístico é número perfeito, um dos atributos da perfeição de Deus, no seu entender. Tenho um amigo que diz que o problema da igreja de hoje não é mais o 666, e sim os 333, ou, os meio bestas.

Anteriormente Paulo, o apóstolo, já havia tido um diálogo bem interessante com Pôncio Festo e com o rei Agripa. Em seu discurso inflamado disse palavras que foram tão consistentes e tão convincentes que este último chegou a declarar: por pouco não me persuades a ser um cristão (At 26.28). É a Bíblia fazendo o registro do primeiro quase cristão da história.

João Wesley foi mais um dos pregadores que atentou para o problema do quase. Em um sermão profundamente inspirado proferido em Oxford, ele vai dizer que os quase cristãos são extremamente parecidos com os cristãos de fato, em quase tudo: na conduta, na oração, na piedade, na justiça, praticamente em todos os atributos, menos na sinceridade. Ele afirma que tudo que o cristão verdadeiro faz por amor a Cristo, o quase cristão faz em mesma proporção, só que por interesse ou por temor ao castigo. Ainda que bem intencionados não passam de quase cristãos, porque para Wesley, a estrada que leva ao Inferno está pavimentada de boas intenções.

Mas já é hora de alguém perguntar e o Quasímodo? Vamos tentar dizer por que ele também é um quase. Para a tradição cristã, o primeiro domingo imediatamente posterior à Páscoa é chamado de domingo de quasímodo, pascoela ou ainda domingo de Tomé. O famoso corcunda recebeu este nome pelo fato ter sido abandonado, ainda bebê, na porta da catedral de Notre Dame nesse dia, e não pelas deformidades de seu corpo, como indica o dicionário citado. Na Idade Média era um dia celebrado como o domingo inferior ou da imperfeição. O domingo de Páscoa, pela magnitude do acontecimento que celebrava, já havia sugado tudo que pudesse haver de bom no período próximo.

Jesus também deu especial atenção aos quase. O diálogo em que diz as palavras do versículo acima estava sendo travado com gente boa, de excelentes princípios. Gente que não somente conhecia, mas que procurava seguir à risca todos os mandamentos. É bom que se diga que para Jesus nem todos os escribas e fariseus eram hipócritas, e nem todos se enquadravam no rótulo de raça de víboras e sepulcros caiados. Alguns, como Nicodemos, aproximaram-se secretamente dele com admiração e respeito, mas não com fé, o que também fazia dele mais um quase. Eles não estavam longe do Reino de Deus, e esse era o seu problema. Por estarem próximos, julgavam que estavam dentro, mas não estavam. Jesus veio ensinar que Reino é algo tão avassalador, que é melhor perder um olho ou um braço, entrar nele manco ou estropiado, do que gozando de perfeita saúde ficar fora dele.

Este é um alerta muito apropriado para a ocasião da Quaresma. É a hora propícia para avaliarmos quais são as posições que nos colocam inteiramente no Reino de Deus, e as que nos levam até a sua porta, mas não permitem que entremos. Observar também que a linha que separa estas duas posições é muito fina e jamais estática, nunca está no mesmo lugar. Lembremo-nos de que o grande diferencial entre o estar dentro ou fora é ditado pelo amor a Deus e ao próximo. A quaresma, mais do que qualquer outra celebração, nos aproxima da exigência primeira desse amor, que é o perdão incondicional. Faz-nos refletir que o perdão fora outorgado a indistintamente todos, aos fariseus hipócritas e aos não hipócritas. Wesley termina com uma pergunta crucial para os que ouviram o seu sermão. Esta pergunta era para que eles se autoavaliassem e revissem a sua posição em relação ao Reino de Deus, mas ela também serve para mim e para você hoje: Será que estamos prontos para amar os nossos amigos, os nossos inimigos e até os inimigos de Deus?

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