Samaritano, o Bom Vizinho

O Bom Samaritano de Antonio de Bellis (1616-1656) 
O lugar comum nas meditações que abordam a necessidade da ação social é a parábola do bom samaritano. Muito embora a Bíblia fale insistentemente e de várias maneiras da nossa responsabilidade para com os pobres, o samaritano foi eleito como o símbolo máximo da nossa missão junto aos menos favorecidos. No entanto, focar esta parábola unicamente sob este aspecto é perder a dimensão essencial e mais específica do relacionamento do cristão com o mundo à sua volta.

Para isso, é preciso que se observe que os personagens envolvidos: o homem assaltado, o samaritano, o levita e o sacerdote, pertencem à mesma classe social, o que desfigura, neste caso específico, o conceito primário de ação social. O relacionamento que Jesus estabelece na parábola é entre pares, pessoas de nível social semelhante, e que financeiramente não carecem umas das outras, no tocante à sua sobrevivência. Mesmo não invalidando o já consagrado consenso sobre a ação social, este é um aspecto que exige da parábola enfoques completamente diferentes e por que não dizer, mais próximos de nós.

Para Jesus, a ideia do próximo não está moldada pelo desnível, pela relação de cima para baixo, onde um dos lados só tem a oferecer e o outro somente a receber, e sim em pessoas parecidas conosco com as quais nos deparamos a toda hora. Traduzido para um português mais atual, esta parábola deveria se chamar a “O Bom Vizinho”, porque a ideia que atualmente temos de vizinho é a que mais se aproxima do sentido que Jesus quis dar à palavra próximo.


Vizinho, é aquela palavra mágica que ecoa no meio de uma noite conturbada pela dor de dente de um filho, ou quando falta açúcar na hora em que o comércio está fechado. Vizinho, é aquele com quem frequentemente nos encontramos nas encruzilhadas da vida, local onde os problemas nos assaltam. Esta dimensão horizontal está nas entrelinhas da pergunta que Jesus fez ao legista: Quem mais pareceu ser o vizinho mais próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?

A parábola, embora breve, é pontilhada de detalhes. Ela surge de um diálogo acerca dos mandamentos, que Jesus travou com um homem, cuja especialidade era justamente a interpretação deles. Jesus não faz opção pelas muitas possibilidades de argumentação, o que resultaria em um debate inútil. Resolve contar uma história, evitando de vez os controversos pontos de vista. Ao confrontar o texto da lei com um fato do cotidiano, Jesus minimiza a difícil questão sobre o que realmente é amar ao próximo, exigida no segundo maior mandamento, sob um único ponto: Quem é o próximo de quem?

Os olhos da modernidade detectam sinais marcantes de insensibilidade de alguns dos envolvidos. Por que o pastor ou o padre não deram assistência devida ao moribundo? Por que o homem que vive investigando a lei e pregando a boa conduta não foi capaz de socorrê-lo? Mais uma vez a parábola dissipa estas dúvidas. Quando diz que o homem assaltado foi deixado semimorto, revela os motivos que foram suficientes para que nenhum dos dois o tocasse. Qualquer contato tornaria impuro qualquer rito oficiado pelo sacerdote, ou suspeito qualquer parecer do levita. As leis judaicas de contaminação eram bastante severas nesta situação em especial. Dentro do rigor da lei, ambos estavam certíssimos e agiram como se podia esperar que agissem. Era um fato tão comum que nem mesmo Jesus ousa denunciá-los, pelo contrário. Nenhuma crítica é direta ou indiretamente dirigida a eles. Sua atitude só é condenada na leitura feita por nós mesmos.

A citação da passagem de ambos pelo local é uma simples contextualização da cena no dia a dia, porque se assim não fosse, o legista estaria municiado de forte argumentação para usá-la contra Jesus. Puxando-lhe o tapete, mudando o rumo da prosa e contrariando-lhe qualquer perspectiva, Jesus não o questiona sobre quem está ou não certo. Jesus não quer que ele responda quem fez o certo e sim quem fez o bem. Esta é uma lição que serve para orientar qualquer tipo de relacionamento. O ensino é claro embora seja controverso, entre o certo e o bem, faça o bem.

Neste caso o certo não importa tanto. Maneira de ser, Jesus mostrou várias vezes durante o seu ministério. Quando pergunta ao cego o que quer que seja feito por ele, não está se mostrando incauto ou se fazendo de engraçado. Jesus não quer fazer por aquele homem o que na sua concepção e na lógica acha certo, quer saber dele, que aparentemente é carente de tudo, qual o bem que mais deseja. Ou, invertendo a direção, qual o mal que mais o atormenta.

Muitas vezes na nossa arrogância, e aí as obras de ação social vem a calhar, tentamos impor aos necessitados o tipo de ajuda que nos parece conveniente, sem atentarmos para as suas reais necessidades e desejos. Jesus nos mostrou que as nossas atitudes devem ser resposta aos anseios e nunca uma imposição da nossa pré-concepção. Um exercício bastante difícil para nós cristãos que estamos sempre assumindo o trono dos donos da verdade.

Outra lição que nos dá esta parábola diz respeito aos julgamentos prematuros. A ideia consensual no relacionamento entre pessoas do mesmo nível sócio-econômico é de que não necessitamos tanto uns dos outros quanto os mais carentes necessitam de nós. Existe por trás da amizade o compromisso de nos mostrarmos fortes o suficiente para não revelarmos as nossas carências, e o de imaginarmos que os nossos amigos têm dentro de si a capacidade de resolver sozinhos as suas questões. A sentença é sempre a mesma: Eles não precisam. Isso vale também para a igreja quando deixamos de orar pelos outros, porque na aparência tudo vai bem. Quando nos desviamos da responsabilidade de suportar as cargas uns dos outros, quando deixamos de chorar com os que choram e de se alegrar com os que se alegram, perdemos junto o conceito que o próprio Jesus fez de amizade: Eu chamo vocês de amigos porque o amigo sabe o que o outro faz. Além do que, este é justamente o tipo do julgamento condenado por Jesus. Sua ordem é vigiar e orar e não julgar aparências. Nos versos do hino 472 do Hinário Evangélico se aprende que mesmo um coração pequeno pode abrigar todo um enorme temporal. As aparências muito mais do que enganar elas traem, e nos carregam junto em sua traição.


Para encerrar, uma especulação. Independentemente de o assaltado supostamente ter tentado retribuir ou agradecer o samaritano, fica com ele é a certeza de que Deus usa, preferencialmente, os meios menos dignos para nos alcançar com a sua graça. Fica com o samaritano a alegria de um coração jubiloso pela honra de ter sido usado como canal da bênção de Deus. Nós já recebemos inúmeras bênçãos que nos vieram de onde menos esperamos. Mas e o nosso vizinho do lado? Será que não precisamos vigiar mais e orar mais, para quando chegar a nossa vez, podermos responder positivamente ao desafio de Jesus de ser um bom vizinho, um samaritano na vida do próximo? 

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