Cristo nossa Páscoa, Bertram Poole. |
Texto do reverendo Ricardo Lengruber.
A celebração da Páscoa ainda tem muito a ensinar. Não apenas
a judeus e cristãos, mas a todos os homens e mulheres de boa-fé que desejam um
mundo melhor. E a máxima é bem simples, embora desafiadora: entre o lugar da
opressão e a terra prometida, há um deserto.
Para os primeiros israelitas, essa era a tônica de sua fé. A
chegada à terra abençoada por Deus demandou uma peregrinação dura e sofrida
pelas areias do deserto. Antes disso, exigiu desprendimento. Apesar de serem
escravos, a lógica da dominação prende muito mais pelas ideias do que pelas
algemas. Libertação subentende conscientização; depende, mais do que de força,
de educação.
A saída do Egito – para além da força interventora
miraculosa de Deus – exigiu maturidade dos israelitas que compreenderam a
situação que viviam e as possibilidades que lhes esperavam no futuro. A saída é
sempre barulhenta e, por isso, faz o povo andar. Vai-se no afã da massa. Mesmo
o menos esclarecido caminha; anda na onda. Apesar de fugaz e efêmera, a saída
da massa funda um ideal coletivo, um sentimento de pertencimento, uma lógica de
companheirismo. Isso é que ligará as pessoas nos problemas que fatalmente
surgirão adiante.
Os desafios começam a surgir de verdade quando a areia
esquenta, o pão mingua e falta a água. “No Egito era melhor” é a conclusão
imediata. Mesmo a figura do líder é relativizada. E isso, apesar de
problemático no programa de quem precisa chegar à terra prometida, é um bem.
Líderes devem sempre ser relativizados. Sua autoridade deve sempre ser
repensada e posta à prova. Com Moisés não poderia e não foi diferente. Esse é
um dado importante: relativizar lideranças.
Passaram-se quarenta anos entre a saída e a chegada. Não é
necessário entrar na questão da mitologização do texto. Isso ocorreu sim. Mas é
exatamente essa força mítica que enriquece e dá perenidade ao relato. O período
no deserto é que forjou quem é Israel. Um povo nascido nas agruras da
travessia. Crises de alimentos, de liderança, de regras e de rumos. Murmuração
e indefinição. O deserto deu consistência social ao aglomerado de gente que,
até então, parecia ter em comum apenas a experiência da opressão. No deserto,
viram-se como irmãos. É bem verdade também que apenas dois dos milhares que
saíram do Egito pisaram na terra desejada. O que revela que o povo que saiu foi
um; o povo que chegou era outro. Radicalmente transformado na travessia. Mesmo
Moisés, ficou pelo caminho.
O ingresso na terra de Israel revela que o fim não é
necessariamente o destino que se almeja. Não houve paz. Ao contrário, a terra,
apesar de geograficamente próxima, estava (como sempre estaria) longe de ser “conquistada”.
Os episódios da Páscoa revelam que esses três movimentos são os ingredientes
formadores da personalidade de indivíduos e povos. Sair, atravessar e chegar. E
os três, indistintamente, com suas precariedades. Quem saiu, jamais deixou o
Egito completamente para trás. Quem atravessou, jamais conseguiu mergulhar
radicalmente na experiência de incompletude que o deserto promove. Quem chegou,
jamais entendeu a efemeridade de uma terra prometida que nunca se possui.
É exatamente nesses termos que Páscoa é Política; porque é
uma intervenção na formação de uma identidade social; na construção de uma
nação. Uma nação que, longe de ser uma unidade uniforme, vive e sofre as
agonias das crises, das lutas, dos cismas e das dúvidas. Apesar de tudo, porém,
conseguiram convergir minimamente. Do contrário, não leríamos suas histórias
passados mais de três milênios.
Essa é a esperança política que a Páscoa alimenta: um povo
com um mínimo de identidade se forja no deserto.
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