Peshat, Müelhein |
Texto do reverendo Ricardo Lengruber
Para os ancestrais dos primeiros israelitas, era passagem do
inverno para a primavera, quando a exuberância da natureza assegurava o
sustento dos rebanhos e das plantações. Tratava-se de um gesto de respeito
supremo pela natureza e sua dinâmica.
Para os hebreus, era a passagem da escravidão para a
liberdade. Memória da libertação experimentada; celebração da ação libertadora
empreendida por Javé em face da opressão com que os egípcios escravizavam o
povo de Israel. Era a fé consciente de seu engajamento histórico; uma bem
equilibrada mescla de política e espiritualidade.
Para os cristãos, passagem da morte para a vida. Recordação
perene da ressurreição de Jesus; sacramento da vida num mundo marcado pelos
traços da morte. Símbolo supremo, por um lado, da transitoriedade humana e, de
outro, da infinita potência da graça divina.
Curioso é que, em todos os casos, não há, necessariamente, a
presença de uma instituição intermediadora. A celebração deveria ser realizada
em casa, ao redor da mesa, narrando aos mais novos a história vivida, de modo a
manter acesa a memória e a inspirar a esperança.
A páscoa hoje exige mais gente e menos festa. A páscoa hoje
é um convite ao recolhimento que promove conhecimento de si mesmo; à
sensibilidade que nos impulsiona na direção do outro; e à fé que nos encoraja a
mergulhar no abismo infinito que é o coração de Deus.
Páscoa é passagem, nesse sentido: no permanente processo da
caminhada de quem deixa pra trás o que não constrói e busca à frente aquilo que
enche de significado a vida. Busca de quem compreende que a vida só tem sentido
quando voltada para a (re)construção de um mundo pleno de justiça e paz.
Páscoa é o nome antigo do que hoje chamamos por
espiritualidade, fé, cidadania, consciência, ética e tantos outras virtudes.
Celebrar a páscoa hoje exige mais que o ritual das
religiões; demanda comprometimento no processo de transformação desse mundo
vil, marcado pelo individualismo predatório e pela opressão dos mais fortes
sobre os mais fracos; manchado pelos traços da morte.
Uma páscoa que se inspira na tradição bíblica passa,
obrigatoriamente, pelo caminho do autoconhecimento, do cultivo de uma
espiritualidade sadia; toca no plano político-social e atua como mola
propulsora para a transformação.
Páscoa, em síntese, é uma sinfonia de espiritualidade com
política, de cidadania com transcendência.
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