O despojamento acima da razão

Anunciação, da Vinci
A primeira dificuldade do cético tem para entender as implicações da encarnação divina, repousa justamente sobre o nascimento virginal de Jesus. Ou seja, a gravidez gerada pelo Espírito de Deus em uma pessoa humana. Mas quando investigamos o milagre em si, verificamos que esta é a menor dificuldade do contexto, pois exigiu do humano escolhido uma entrega de si mesmo mais do que a razão é capaz de aceitar como sacrifício. E é justamente este é o tema que embala o quarto Domingo do Advento: as aflições de Maria.

Quando a Bíblia fala que um anjo foi enviado a uma virgem desposada de um homem chamado José, nem sequer arranha a dramaticidade da situação real, pois o que na realidade existia era uma promessa de casamento entre a família de uma menina adolescente e um homem de idade adulta, que, inclusive, já havia se casado anteriormente pelo menos uma vez. Nós que hoje ainda ficamos constrangidos ao nos depararmos com adolescentes grávidas, não fazemos ideia das consequências que a Anunciação de Maria viria trazer para que a menina em questão. Como se pode exigir que uma pessoa tão jovem arrisque a própria vida para responder positivamente a um chamado, que somente lhe foi apresentado uma pequena parte as reais implicações, a qual ela sequer entendeu direito? Como pedir a um incapaz, como ela seria classificada hoje em dia, que se aventure em uma série quase que interminável de desafios, cada uma mais grave e mais extenuante que o anterior?

O risco de ser rejeitada por José, seu futuro marido, não somente condenava a jovem a uma vida que oscilaria entre a prostituição e a escravidão, mas mais provavelmente ao apedrejamento impiedoso destinado às adúlteras, quando se constatasse o motivo da rejeição.

Ser forçada pela lei civil a uma peregrinação a uma cidade sem recursos em estágio avançado de gravidez também é uma situação de exposição a risco de morte imediato. Quem dá à luz um filho em razões precaríssimas de higiene e segurança, não pode, de forma alguma, garantir a saúde de uma vida tão carente de cuidados. O presépio de hoje relembra apenas uma cena pastoril, onde registra a presença dos mais variados segmentos: anjos, homens, animais, ricos, pobres, reis, subempregados, céus e terra.

A fuga para o Egito sob a ameaça de decapitação fez de Jesus Cristo o exilado político mais novo da História, e não aconteceu sem consequência da perda de tantas outras jovens vidas.

Nós que nos apegamos ao primeiro sim de Maria, quando interpelada pelo anjo, como seu maior exemplo de despojamento, não atentamos para os vários outros “sins” que lhes foram exigidos pela sua intransferível participação na maior empreitada de Deus na história da salvação.

Esse é um sinal marcante do primeiro Natal, que deve marcar também todos os Natais subsequentes: o despojamento de tudo para um chamado de Deus para se viver um novo tempo, onde não haverá nem pranto e nem dor. Onde as coisas antigas passaram e tudo se fez novo. Onde a justiça correrá como um rio caudaloso, e o juízo como um ribeiro perene.

Mas antes de viver é preciso apostar que isso vai dar certo. É preciso acreditar que, como disse Paulo: Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós.

Que possamos enxergar em Maria, a nossa grande heroína da salvação, que Deus tem de fato a História em suas mãos. E que qualquer sacrifício por um Natal que anuncie um novo tempo é pequeno, se comparado ao que o próprio Natal aponta como realidade.

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