Uma fé sem barganhas

O Senhor é o meu pastor, Scot Crandal

O Senhor é meu pastor e nada me faltará. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam
.

Este é um dos salmos mais conhecidos. Consagrado como a bênção do pastor, é usado frequentemente como importante peça litúrgica no ofício fúnebre. Muitos o memorizam ou o repetem em momentos de penumbra e de provação; de lutas e lutos. Confesso que é uma de minhas páginas bíblicas prediletas; vejo o salmo 23 como uma das obras mais belas do Saltério.

Se existem salmos que falam, embora da perspectiva do poeta, de fatos vivenciados por todo o povo, uma liturgia viva que nasce da sofrida história de Israel, a página que agora destaco foi certamente gerada das íntimas experiências doces ou doloridas de um pastorzinho de ovelhas que foi ungido rei. Leia com atenção cada verso dessa belíssima e forte poesia e quase verá a cena pastoril que é sempre evocada na época do Natal.

Mas note bem. Há um verso dessa magnífica composição poética que merece uma reflexão especial. É quando Davi expõe o próprio núcleo de sua fé: ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte, não temerei mal algum porque tu estás comigo.

Observe que Davi é muito claro. Escreve: ainda que. Não diz: por causa de. É a isso que eu chamo uma fé sem barganhas. Não se trata de um negócio com Deus, como chegou a propor Jacó: darei os meus dízimos, se me abençoares. Mas é a aceitação da vontade divina, ainda que não corresponda ao nosso querer. Vejo essa atitude de absoluto desprendimento como o salto da fé vivido por Sõren Kierkegaard: ainda que com temor e tremor; esmagado por sofrimentos e dúvidas.

Leia o precioso Livro dos Salmos como um todo e sublinhe outras expressões semelhantes do poeta de Deus. São muitas. E todas mostram a mesma coragem moral e espiritual: ainda que as águas tumultuem e espumejem; ainda que os montes se transportem para o meio dos mares; ainda que o meu pai e minha mãe me desamparem .. Mas nenhuma dessas declarações incondicionais e sem barganha são tão fortes como a confissão de Davi neste salmo: ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte, não temerei mal algum porque tu estás comigo... O Senhor é o meu pastor e nada me faltará.

O apóstolo Paulo me parece animado pelo mesmo espírito de entrega incondicional, sem barganhas. Perseguidor da Igreja cristã, passa a ser perseguido, mas desde o seu encontro dramático com o Cristo na estrada de Damasco, ele não mais especula, mas se revela com absoluta disponibilidade: Senhor, que queres que eu faça? E certamente Paulo levou com seriedade o trabalho que lhe foi confiado. Estruturou a Igreja, fez viagens missionárias, combateu, como dizia, o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé. Conta a tradição que, em sua última oração antes de ser decapitado, Paulo voltou-se para a direção de Damasco, onde acontecera o encontro com o Cristo de sua vida. E, antes que o ceifasse o cutelo romano, derramou diante de Deus seu verdadeiro credo: eu sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar a minha vida até o dia final. E partiu ao encontro da luz.

Por causa de ou ainda que? No caso do apóstolo dos gentios, certamente ainda que, apesar de todas as provações. Apesar do próprio martírio.

Faça você também a sua escolha.

Nenhum comentário:

ads 728x90 B
Tecnologia do Blogger.