Só um cristão pode ser um bom ateu

Diz o insensato no seu coração: Não há Deus.
Festa dos loucos, Pieter Bruegel

Texto do rev. Jonas Rezende.
José Miguez Bonino, conhecido teólogo da Argentina, relata em seu livro Espaço para ser homens um diálogo muito interessante. O filósofo judeu Ernest Bloch, que dedicou anos de estudo à influência da Bíblia na história da esperança, faz uma afirmação categórica ao teólogo cristão Jürgen Moltmann: só um ateu pode ser um bom cristão. Ao que Moltmann retruca: mas só um cristão pode ser um bom ateu.

Veja bem. A noção de que é importante crer pelo menos em alguma coisa, ou seja, apegar-se a alguma fé, pode levar a alguns sérios e graves erros. Afinal, boa parte das atrocidades cometidas contra o ser humano foi cometida justamente por aqueles que tinham firmes convicções, como os cruzados, os inquisidores, ou mesmo os nazistas. O importante então não é apenas crer, mas em que Deus cremos nós.

Essa a razão por que visito novamente o salmo 14. Depois de afirmar que é tolo ou insensato quem diz que Deus não existe, o salmista declara também que o Senhor olha os filhos dos homens para ver se há quem entenda, quem busque a Deus. Não encontra ninguém, razão por que afirma depois que só aprova a linhagem do justo.

No livro de Bonino, o teólogo nomeia algumas objeções insensatas para negar a existência de Deus. A primeira é a de quem afirma que prefere o caminho da ciência, como se houvesse incompatibilidade entre fé e ciência. Não há. Se o saber científico nega superstições que buscam explicar os fenômenos do Universo, como o raio, o trovão, a chuva - a posição de quem crê é também a de eliminar esses deuses evocados como explicação. Diante deles, tanto a ciência como a fé desenvolvem a mesma e correta posição do mais absoluto ateísmo. A ciência sem religião é capenga: a religião sem ciência é cega - declara Einstein.

Outros poderão objetar: não creio em Deus porque acredito no ser humano, e os religiosos historicamente sacrificaram inocentes, em nome do seu Deus. E um argumento ponderável. Mas, na verdade, um religioso consciente fará exatamente a mesma crítica. Porque também é ateu, diante desse deus tirano criado por uma concepção equivocada e infeliz. Nesses casos, atribuo algum valor às recentes reparações históricas feitas pela Igreja, como a que aconteceu com Galileu Galilei.

Ainda existe quem se diga ateu, porque é inadmissível crer no Deus que serve como instrumento de exploração do ser humano, nas incontáveis guerras, competições econômicas ou nos cruéis processos de colonização. Vamos ser honestos, porém. Qualquer religioso verdadeiro é ateu diante do deus que serviu à ganância dos imperialistas de todos os tempos e lugares. Bastaria passar a palavra aos teólogos da libertação.

E isso aí. Para sermos bons religiosos, e não somente bons cristãos, é preciso que tenhamos a postura do ateu diante dos falsos deuses, deformados e deformadores. Essa é a posição do salmista, do profeta Isaías, de Martin Luther King, de João XXIII e de tantos outros. Acima de tudo, não podemos ser imaturos em nossa fé, deixando de buscar compreender melhor e reformular de modo adequado ideias e posturas de vida - como fez Davi, que escreveu este e muitos outros salmos. O Deus vivo e verdadeiro merece nosso empenho incessante.

Harvey Cox, teólogo e antropólogo norte-americano, analisando o chamado pecado original, afirma que é sempre uma vergonha quando deixamos que uma serpente decida o nosso destino, à semelhança do que aconteceu no Livro do Gênese. E Cox conclui que o pecado de origem não é o sexo nem o orgulho. Mas, a preguiça.

Quebre a inércia e se encontre com Deus.

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