Milagre

Multiplicação de pães e peixes, Lambert Lombard
O milagre é uma vitória sua sobre você mesmo. Sobre seus medos, suas inquietações, seus egoísmos e suas sobre tentações. Autor desconhecido.

Não me recordo mais onde foi que li isso, porém sou obrigado a dizer que concordo com boa parte do que está escrito. Digo que concordo em parte, porque talvez não seja bem essa a minha íntima e acomodada expectativa sobre o que seja o milagre. Contudo, olhando pelo ponto de vista que os ateus racionalmente mais acentuam, não vejo como não concordar.

Logicamente que vencer a si mesmo é o grande objetivo de todo competidor que leva a vida a sério. Sabemos que em alguns esportes não há qualquer tipo de competição entre os seus praticantes, porque neles a filosofia se baseia unicamente na vitória sobre o atleta hoje, sobre a pessoa ele mesmo representava no dia anterior. Por outro lado, sabemos também que o paralítico ao conseguir dar um único passo sem ajuda de outra pessoa e de aparelhos, se enche de orgulho e fica imbuído de uma sensação de vitória mais acentuada do que um medalhista olímpico. E esse é um orgulho que se estende aos pais e às pessoas que contribuíram para esse pequeno-grande passo, pois este se trata de um milagre muito mais abrangente, e não simplesmente de uma combinação de esperada de resultados.

Vencer o medo, também seria um milagre, visto que, na maioria das vezes, o medo é contornado, quando não é substituído por um medo ainda maior. Vencer o medo deve ser um milagre experimentado muito por poucos. Eu mesmo não sei se já venci algum, pois mesmo os medos que pensava terem ficado no passado, volta e meia me atormentam, como se estivessem presentes aqui e agora. Até mesmo a soma de todos os medos, nome de um best seller que virou filme, que em suma é o medo da morte, nunca é encarado. De uma forma ou de é sempre contornado, inclusive com piadas e brincadeiras. Disse certa vez Woody Allen: Não é que eu tenha medo da morte. Eu apenas não quero estar lá quando isso acontecer. Em uma profecia que Jeremias faz para si mesmo, em que ele expressa toda a tensão e risco da sua missão profética, Deus referindo-se aos adversários do profeta lhe diz: 1.17 - Jeremias, prepare-se para ir. Vá dizer a eles tudo o que eu mandar. Não tenha medo deles agora, pois, do contrário, eu farei com que você fique com mais medo ainda quando estiver no meio deles. Assim, coloco em cheque também o milagre da vitória sobre o medo.

Vitória sobre as inquietações, também, não posso dizer que seja o meu forte, ou talvez até que já tenho conseguido alguma. O que naturalmente aprendi com a vida foi que as inquietações se sucedem, não de forma a anular a anterior, mas de passá-la para planos inferiores, onde elas acabam virando situações mal resolvidas no nosso passado.

Mas o que realmente me preocupa é a vitória sobre os egoísmos e tentações, que em uma análise a partir do pensamento cristão são sinônimos. Na oração do Pai Nosso Jesus dá a exata noção do quanto é difícil ver este milagre se realizar. A oração se fundamenta principalmente nesses dois elementos: egoísmo e tentação. Uma vez que a mente hebraica de Jesus não estava subjetivando e nem fazendo abstração sobre o tema, pois, para ele, tentação e egoísmo eram estados da alma e não atos isolados. Em sua oração ele nos mergulha na multidão, e faz com que nos sintamos parte de um complexo organismo onde o egoísmo do meu Pai, do meu pão e do meu perdão se esfacela. E para que não suscitasse dúvidas na sua intenção, uma tradução da oração ao pé da letra leríamos: não nos leve para dentro da tentação vinda do mal. Uma clara distinção entre a provação da fé e a compulsão para fazer o mal, visto que no português usamos a mesma palavra para ambas as situações.

Por mais estranho que pareça, milagre é uma palavra que não consta na Bíblia, pelo menos da forma que a usamos. Os antigos não pensavam no milagre como um fato extraordinário que negava a ordem natural. Milagre era a presença de Deus no meio deles fosse nas situações de medo, inquietação, egoísmo ou mesmo na mais árdua tentação. Deus estando presente, tudo se relativizava, tudo saía de foco. A presença de Deus era suficiente, mesmo que não acontecesse o milagre, mesmo que a situação se mantivesse crítica, mesmo que a expectativa não vingasse.

Diante dos infortúnios que assolaram os heróis da fé em todos os tempos, aí sim, sou mais que obrigado a colocar a frase do desconhecido autor em um patamar circunscrito pelo limite da razão, pois o verdadeiro milagre, nem toda razão adquirida pelo homem até então pode explicar.



                                     

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