Não vale a pena

Vitória, ó Senhor, John Everett Millais
Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos. Leia Salmos 90 

Texto do rev. Jonas Rezende

Penso que, quando esquecemos os detalhes do que aprendemos nos bancos escolares e através da vida, o que sobra, com feição pessoal, pode ser chamado de nossa cultura. Assim também, quando não mais estamos presos aos detalhes das reflexões religiosas, às formulações doutrinárias ou às explicações dogmáticas, é então que podemos atingir o cerne mesmo da nossa fé. E descobrir que o que vale a pena é bonito, mas simples, muito simples: ternura, bondade, amor.

Volto mais uma vez a esse belo e único salmo de Moisés que, como já foi visto, fala da eternidade de Deus e da transitoriedade da vida humana. O grande líder de Israel suplica a Deus em sua bela oração: ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos coração sábio. Fica patente que Moisés quer sabedoria para atingir, dentro da assustadora brevidade da existência humana, uma escala verdadeira de valores.

Acredito que, desse prisma maduro, não vale a pena morrer nem derramar sangue por causa dos credos, que foram formulados pelos religiosos, no transcorrer da História. Muito mais importantes são: o amor divino que Jesus encarna, o despojamento de Buda, a entrega absoluta do Mahatma Gandhi à causa da paz, a pureza de São Francisco de Assis. Qual a relação que esses pontos altos da vida humana podem ter com os equívocos das Cruzadas e os crimes da Inquisição? Você já notou que tentar explicar a fé é como dissecar a beleza da mosca azul? Basta usar essa incrível massa cinzenta com que Deus nos dotou, ou exercer uma vida de compaixão, para saber que nada disso vale a pena.

Também não vale a pena dar livre curso aos nossos ódios e rancores; a vida é muito breve para gastarmos um segundo que seja com paixões que terminam também por nos destruir.
Quando morreu o poeta Menotti dei Picchia, Millôr Fernandes escreveu uma bela e inteligente crônica. Confessou que se afastara do poeta por divergências no campo das ideias. Mas, com Menotti já morto, concluiu que esses rancores políticos nunca levaram a nada. Teria sido bem mais inteligente apenas admirar o seu trabalho poético, que tem coisas belas como estas:

Sonhar é tão doce sonhar; a vida nesta terra
vale a pena, talvez, pelo sonho que encerra...

É preciso lapidar o diamante da nossa vida. Um dia, porém, concluímos o que, para os santos é natural como a respiração. Plantar uma árvore é mais importante do que rezas mecânicas. Um abraço de amor vale mais do que a seriedade dos credos que não convencem. E melhor um banho de cachoeira do que os batismos de um formalismo sufocante. Preferível o palavrão que alerta às declarações hipócritas de um amor sem futuro.

Tiago, escrevendo sobre a religião verdadeira, é muito prático. O que ele pensa poderia ser assim resumido: viver em bondade ativa, em ternura. Quem aceita que Deus é amor, como afirma a Bíblia, não pode sonegar bondade aos que o cercam, na caminhada de cada dia. Viver dessa maneira vale a pena.

Como compreendeu Fernando Pessoa:

Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.

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