Segurança no salmo 23

O Senhor é o meu pastor, www.CC-Art.com
O Senhor é o meu pastor, e eu não preciso de mais nada. Leia Salmos 23

De repente tudo vem à tona. Se num instante você se sente seguro e protegido, por uma única notícia que sai na TV no instante seguinte você se abala incontrolavelmente. Tenho certeza de que muita gente também se sente dessa forma. Pois nem não precisamos conhecer as pessoas ou termos estado com ela, porque existe uma ligação íntima entre os sentimentos comuns, de modo que o clima de segurança se dispersa imediatamente. E é o problema.

Quando leio esse salmo fico pensando: quando foi que eu tive uma vida tão tranquila quanto a que ele descreve? Olha que eu já li pelo menos mil vezes, já o memorizei desde criança, já fiz a sua exegese no seminário, tenho pregado e ensinado algumas vezes sobre ele e até mesmo o tenho cantado em seus vários arranjos musicais. É instigante como a vida pode questionar o texto bíblico de forma a me fazer pensar que o que o salmo narra nunca ocorreu na vida real, apenas nas citações, leituras, lembranças e canções.Mas é instigante também que mesmo assim o salmo se apresenta com sentido diferente a cada leitura, como se eu estivesse lendo determinado trecho pela primeira vez.

Olhando para a história de Israel e contexto do poeta a quem o salmo é atribuído, não consigo ver um cenário diferente do nosso. Basicamente a história de Israel é a história de conflitos, e a coisa mais fascinante sobre isso é que o salmo tem uma enorme capacidade de absorver tanto as interpretações de um passado que para nós é surrealista, como a realidade de hoje, assim como absorverá também as interpretações de um mundo para o qual o nosso mundo será surrealista. 

De que forma, então, o salmo nos desafia? Normalmente é lido como um salmo de segurança, mas poucos percebem que ele impõe pelo menos duas condições que se destacam. A primeira fala de confiança: Eu não temeria mal algum, porque tu estás comigo.

O salmista não nega que o mal é uma realidade presente e nem subestima a sua capacidade de causar danos. Mas ainda assim ele adota uma postura firme diante da ameaça. Não porque ele vivia na segurança do palácio. Não porque havia um esquema de vigilância constante sobre ele. Não porque estava de posse de um armamento pesado para a sua defesa. Mas sim porque Deus estava com ele. É esse o testemunho primordial da fé bíblica: há um só Deus em quem toda a nossa confiança está depositada e que vem em nosso socorro porque está sempre conosco, mesmo quando não estamos com ele.

Já a segunda condição é bem menos considerada no contexto cristão, fala de vingança: Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda. Contudo, mesmo destoando da mensagem do evangelho, está em plena conformidade com a nossa realidade, pois, se o nosso primeiro impulso é de medo diante do mal, o segundo impulso é sempre de indignação e vingança. Assim como o salmista não nega a realidade do mal, não ignora também os ressentimentos contra aqueles que foram portadores  do mal que lhe atingiu em cheio.

A menção que o salmista faz do inimigo está subordinada à sua confissão preliminar sobre a bondade de Deus e a generosidade com a qual ele foi abençoado. O impulso de vingança é um curto-circuito provocado pela consciência indignada, mas que é contido pela esperança do momento em que a alegria da confiança restaurará a ordem. Não estou afirmando que o salmista é uma espécie de pacifista, mas sim que o texto apresenta uma visão de mundo alternativo em que a violência deve ser evitada em favor de um processo mais tolerante. A inserção de um momento reflexivo de ação de graças encontra o impulso de vingança e cria um espaço que abre perspectivas de transformação pessoal e social, incluindo a do inimigo, tão necessária hoje como era o dia este salmo foi escrito.

Temos responsabilidades, tanto para com Deus com para com os nossos inimigos. Esperamos que algum dia, em vez de misturar esses sentimentos, a igreja possa mostrar à sociedade a sua própria fé reformulada, e que faça com que a realidade do mal deixe de ser uma interminável sequência de vinganças.

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