Contra a deificação de Isaac

Sacrifício de Isaac, Pedro Orrente em 1616

Depois dessas coisas, pôs Deus Abraão à prova e lhe disse: Abraão! Este lhe respondeu: Eis-me aqui!  Acrescentou Deus: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei. Gênesis 22.1-2

Estamos diante de um dos trechos mais obscuros da Bíblia. Fato que nas Escrituras não tem precedente nem subsequente. Texto que já foi analisado e explorado pelas mais brilhantes mentes do Judaísmo, do Islamismo e do Cristianismo sem que se tenha conseguido uma conclusão minimamente satisfatória. Porção bíblica muitas vezes evitada por pregadores devido à sua complexidade controversa que afronta a essência da mensagem de Jesus no Segundo Testamento, embora encante a todos os que se veem diante dele.

Poderíamos começar falando da tradição religiosa dos caldeus que exigia sacrifício de crianças, principalmente dos primogênitos; da brutalidade que imperava entre os povos que viveram a Idade do Bronze; da relativa estima que aqueles povos tinham para com os seus filhos, mas nada disso sequer arranharia a blindagem natural que o texto criou em torno de si quando foi escrito e que tem mantido consigo até os dias de hoje. Logicamente que a partir do ponto de vista de Isaac não conseguiríamos produzir qualquer esboço de explicação possível. Não há motivo algum para imaginarmos que Isaac se recuperou do trauma causado pela mórbida cena após refletir sobre seus pontos positivos. O que na realidade podemos extrair é o fato de que, na Bíblia, pai e filho nunca mais trocaram palavras entre si. Resta-nos, então, buscar na visão de Abraão algum possível resquício de lógica.

Uma das características marcantes desse patriarca era a sua disposição de estar sempre em movimento. Não se pode sequer mencionar na vida de Abraão a palavra monotonia. Ele acompanhou seu pai, Terá, quando este empreendeu uma migração de Ur para Harã. Foi obediente à estranha ordem de Deus para abandonar o crescente fértil e se aventurar em uma terra completamente desconhecida levando com ele sua família e tudo o que o ligava às antigas tradições. Ao constatar que a terra que lhe foi prometida encontrava-se em estiagem, seguiu em frente em uma viagem não programada até o Egito onde foi confrontado por nada menos que Faraó. Mostrou suas habilidades bélicas ao derrotar cinco reis locais para libertar seu sobrinho Ló. Viu-se envolvido na querela entre Sara e Hagar, quando teve que tomar decisões drásticas. Confrontou o próprio Deus em defesa das cidades da campina: Sodoma, Gomorra, Admá, Zeboim e Bela.

Todas essas proezas, por assim dizer, foram realizadas antes do nascimento de Isaac. Mas depois que Isaac nasceu, parece que Abraão abandonou de vez o estilo empreendedor. Parece que Abrão se aposentou da função de patriarca bíblico imediatamente após ter gerado um filho. Parece que também transferiu para o filho não somente as heranças materiais e religiosas, mas também todas as suas expectativas de realização como pessoa. Isaac cresceu tanto na estima de Abraão a ponto de resumir na pessoa do filho todos os sonhos, desejos e perspectivas. Isaac se tornou a única razão de viver de Abraão. Fora de Isaac não havia vida possível para Abraão. Isaac se tornou uma espécie de deus para Abraão.

Diante disso, podemos muito bem pensar que a tentativa escamoteada de Deus ao pedir o sacrifício de Isaac era trazê-lo de volta à realidade. Foi um recurso extremo, mas necessário, para que Abraão voltasse e se inserisse novamente no plano de salvação de Deus, acabando de criar seu filho dentro do propósito designado por Deus para o qual a sua família foi chamada. Abraão precisava ver novamente Isaac como um perpetuador das promessas de Deus para todos os povos e não mais como uma extensão melhorada de si mesmo.

Vamos olhar fixamente para Abraão, mas agora, pensando como cristãos e como igreja. Vamos ver o que precisaríamos sacrificar para continuarmos inseridos no plano de Deus para a salvação do mundo? O que teríamos que abrir mão para continuarmos sendo dignos das promessas do Reino nos dias de hoje? O que teríamos que deixar para trás para recebermos com um pouco de dignidade a herança legada pelos grandes heróis da nossa fé? Como perpetuar a saga daqueles que perderam tudo por amor do evangelho?


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