Crer para ver ou ver para crer? I

Jesus aparece aos discípulos, Imre Mórocz(1962-)

Respondeu-lhe Jesus: Não te disse eu que, se creres, verás a glória de Deus? João 11.40

Disse-lhe Jesus: Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram. João 20.29

Para um cristão bem formado e maduro não há muito que discutir nesse imbróglio que é tão antigo quanto o próprio cristianismo. Estes já possuem jurisprudência firmada e não vivem pelas esquinas da vida repetindo a enfadonha ladainha do santo dos desconfiados, são Tomé, orgulhando-se em dizer que antes precisam ver para depois, então, crer. Parece que Jesus também não nos deixou muita margem para essa escolha, pois não somente garantiu aos que antecipadamente cressem uma visão privilegiada da glória de Deus, como também afirmou que aqueles que manifestassem de modo prematuro a sua fé nele seriam mais bem aventurados do que os mais céticos. Somente isso já nos daria motivos de sobra para fazermos a escolha definitiva pelo crer para ver, deixando de lado para sempre o ver para crer.

Contudo, pode ser que estas posições não sejam tão antagônicas quanto julgamos ser. Pode ser também que estas escolhas não sejam nem mesmo excludentes. Temos como atenuante o fato de que Tomé não foi banido por Jesus do grupo dos seus apóstolos por manifestar-se tão radicalmente contrário aos demais. Deve sim ter causado alguma estranheza àqueles que crerem na ressurreição antes dele, mas sua dúvida foi plenamente compreendida e acolhida por Jesus: E logo disse a Tomé: Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; chega também a mão e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente. Por tudo isso proponho que façamos uma reflexão sobre estas duas posições ou estados da fé e analisemos alguns aspectos positivos de negativos de ambas.

Primeiramente vamos conferir o real posicionamento daqueles dez apóstolos que acreditamos serem os pioneiros da fé na ressurreição. As narrativas dos evangelhos nos mostram que não foram eles os primeiros a crer. Eles podem ter acreditado na ressurreição antes de Tomé, mas algumas mulheres que foram tidas em seus conceitos como loucas, creram bem antes deles: Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago; também as demais que estavam com elas confirmaram estas coisas aos apóstolos. Tais palavras lhes pareciam um como delírio, e não acreditaram nelas. (Lc 24.10s) Se existe alguém bem aventurado nesta história não são os dez. Existe quem o seja bem mais que eles. Por isso é que é tão difícil transmitir a mensagem da ressurreição com palavras, Jesus sabia bem disso quando se aproximou furtivamente dos caminhantes de Emaús. Foi preciso que Jesus se manifestasse com gestos para que nele cressem.

Outro dado causa muita estranheza e coloca muitas dúvidas sobre a fé prematura dos apóstolos. Jesus havia ressuscitado fazia uma semana e eles ainda estavam trancados com medo dos judeus. Ressalva feita a Tomé, que estava na rua, possivelmente se expondo aos perigos inerentes ao fato de ter andando com aquele que fora crucificado. Ou seja, passados sete dias a ressurreição não tinha tido qualquer efeito sobre a vida deles. Jesus aparece no meio deles mesmo com as portas trancadas e lhes comunica a sua paz, como peixe com eles para lhes assegurar que não é uma aparição fantasmagórica: E, por não acreditarem eles ainda, por causa da alegria, e estando admirados, Jesus lhes disse: Tendes aqui alguma coisa que comer? Então, lhe apresentaram um pedaço de peixe assado [e um favo de mel]. E ele comeu na presença deles. (Lc 24.41ss) 

O medo parece que era a tônica dos discípulos. Alguns teólogos afirmam que o evangelho de Marcos terminou de fato no verso oito do capítulo 16: E, saindo elas, fugiram do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e de assombro; e, de medo, nada disseram a ninguém. Este era o estado real de todos os discípulos. O restante do evangelho, para eles foi um acréscimo posterior para atenuar a realidade. Por conta disso, não nos precipitemos julgando que depois dessas provas irrefutáveis a atitude deles mudou e foi diametralmente oposta.  Uma semana depois, ou seja, decorridos quinze dias da ressurreição, após terem recebido diretamente sobre si o sopro do Espírito Santo de Deus, eles estavam ainda trancados no mesmo lugar e com medo dos mesmos judeus. Passados oito dias, estavam outra vez ali reunidos os seus discípulos, e Tomé, com eles. Estando as portas trancadas, veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco!

Existe, no entanto, paralelo ao universo dos cristãos convictos de serem bem aventurados, o submundo dos que querem ver para crer. Aqueles que tem um estilo de vida bem mais complicado e muito mais inquietante. Este mundo é habitado por aqueles que possuem uma fé investigativa, que procura saber, que não se contenta com o imediato, com as coisas prontas e nem com as que já foram muito experimentadas. Esta era, por exemplo, a fé dos bereanos, que ao lidarem com um conhecimento de Deus totalmente novo, foram investigar se tudo aquilo encontrava respaldo no passado, ou seja, foram distintos dos tessalonicenses juntamente porque foram ver para crer. Esta também era a fé de Jó após a sua conversão, posto que antes, quando tinha fé nas coisas que ouvia a respeito de Deus, cultivou uma fé burguesa, barganhadora e supersticiosa. Na sua conversão Jó viu, e assim então pôde crer verdadeiramente.

 Jó, mais do que qualquer outro herói da fé antes dele, precisou ver, e pagou um alto preço para isso, para depois então crer. Esta é a fé dos que andam sobre o fio da navalha, daqueles, que como Jó, vão até as últimas consequências para ver aquilo que faz ser diferentes, que não ficam apenas na contemplação dos fatos e acontecimentos, pois são estes os inquietos e inconformados que fazem as coisas mudarem.

Não temos como negar que muito do avanço do conhecimento humano, seja na área tecnológica, ou na área das ciências humanas, se deve exclusivamente àqueles ou àquelas que um dia ousaram a perguntar por quê. As áreas que militam o autoconhecimento, como a teologia, não tem como escapar desta sina. Certa vez ouvi entristecido um seminarista que estava quase se formando, orgulhosamente dizer que nunca havia tido uma única crise sequer na sua fé enquanto fazia seu curso de teologia, e a única pergunta que pude lhe fazer foi se ele tinha certeza de que havia estudado teologia naquele seminário. Isto nem foi o mais grave, já ouvi outro dizer que se formara sem nunca ter lido completo qualquer livro, nem a Bíblia. Ele hoje é pastor de uma igreja grande e caminha a passos largos para se tornar bispo. (continua)


Nenhum comentário:

ads 728x90 B
Tecnologia do Blogger.