Não sem sangue

Sacrifício de Isaque, Caravaggio em 1603
Onde há um testamento, é necessário provar que a pessoa que o fez já morreu. Pois o testamento não vale nada enquanto estiver vivo quem o fez; só depois da morte dessa pessoa é que o testamento tem valor. Então Moisés disse: “Este é o sangue que sela a aliança, que Deus mandou vocês obedecerem. De fato, de acordo com a lei, quase tudo é purificado com sangue. E, não havendo derramamento de sangue, não há perdão de pecados. Hb 9.16,17,20 e 22

Não fosse o escritor da Carta aos Hebreus, pelo menos eu não teria atentado para o real sentido da palavra testamento no contexto cristão. Sempre que se fala em testamento, simplesmente, imediatamente associa-se à ideia de uma partilha de bens deixada por escrito por alguém que morreu recentemente. Mas dificilmente alguém se lembra das consequências da morte quando falamos em Antigo ou Novo Testamento, ou, como prefiro chamar, Primeiro ou Segundo Testamento. Esta associação, que deveria ser imediata, é mais clara na mente de uma pessoa não ligada à igreja do que no pensamento de iniciado no Cristianismo, mesmo que ela seja imprescindível.

Se formos definir o que é testamento, seja ele novo ou antigo, primeiro ou segundo, teríamos que fazê-lo a partir de duas premissas: Primeiramente, não há testamento sem sangue (mais exatamente, sem sacrifício). Em segundo lugar, um dos testamentos veio para substituir, complementar e aperfeiçoar o outro. Poderíamos dizer que no aspecto jurídico, o segundo veio para levar à perfeição a justiça que o primeiro se propôs fazer. Para efeitos legais, onde há divergência entre eles, prevalece o texto que do segundo e mais novo testamento.

Falando agora especificamente do contexto cristão, não podemos refutar a ideia de que a morte de Cristo é o que nos dá a certeza de que o texto do Segundo Testamento prevalece sobre o Primeiro. Mesmo aqueles que não querem aceitar esta lógica, não podem omitir o fato de que o próprio Jesus já havia se pronunciado neste sentido, quando por várias vezes disse: Ouviste o que foi dito aos antigos? Eu, porém, vos digo. O escritor desta carta faz uma afirmação, embora traduzida em linguagem pouco usual, que confirma a legalidade do processo de sucessão. Se o Primeiro Testamento foi ratificado a partir do sacrifício de animais, Jesus ratificou o segundo com o seu próprio sacrifício. No versículo 7 deste capítulo 9 ele escreveu: Mas não se sangue.

Não se pode comparar a diferença dos preços que foram pagos por estes Testamentos. Aqui, mais uma vez eu me lembro da história que contava o meu falecido amigo João Wesley Dornellas sobre o sanduiche de bacon com ovos. No caso do ovo, a galinha apenas participa, contribuindo com o fruto do seu trabalho. Mas no caso do bacon, o porco se engaja e se compromete dando o seu sangue. É preciso que ele morra para que o processo se confirme. Do primeiro Testamento, Moisés é um mero participante. Faz a sua contribuição e volta para sua casa com saúde e integridade física. Poderíamos até dizer que voltou melhor do que antes. Mas na confirmação do Segundo Testamento Jesus não voltou para casa, não teve o seu rosto resplandecido, não foi admirado pelos que o viram e nem causou medo ou espanto. Jesus padeceu ali mesmo. Foi abusado, humilhado, torturado, exposto à degradante cruz e morto sem uma justificativa válida.

Este é o preço que foi pago para nos livrar das leis impiedosas e das dietas rigorosas. Nos fez dispensar artefatos sagrados, com a Arca da Aliança, shofar, mezuzáhs e menorás. Este foi o preço que Jesus pagou para que não mais confundíssemos o seu Pai com um dos antigos deuses da guerra; não mais Senhor dos Exércitos, mas agora Deus e Pai de todos nós. Este é o preço que nos permitiu conhecer a perfeição da lei: o amor a Deus intimamente ligado com o amor ao próximo. Que ao abrimos estes Testamentos possamos ver mais do que heranças e promessas. Que vejamos nele o preço da sua autenticação, pago por Jesus, e o preço da sua conservação íntegra, pago pelos nossos heróis da fé. Numa coisa, porém, os dois Testamentos concordam: Onde não há derramamento de sangue, não há perdão de pecados. 

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