Transfiguração II

Transfiguração, Raphael (1483-1520)
Releia Lucas 9,28-41
Por outro lado, temos que considerar que existem muitos templos dedicados a outros credos que são lugares muito agradáveis. Alguns possuem em seus rituais manifestações musicais e expressões corporais mais ricas e mais belas que as nossas. Em outros, a fraternidade e a misericórdia são bem mais evidentes. Mesmo que Jesus nos tenha alertado sobre a necessidade de superarmos as instituições humanas indo além delas na justiça, no amor, na compaixão, caminhando, se preciso for, mais um milha. Através do seu ensino ficamos sabendo também que devemos exceder as boas ações daqueles que professam outros credos, sem, contudo, omitirmos as práticas exclusivas do Cristianismo. Porém, o que se vê nas igrejas hoje em dia é a declarada guerra “espiritual” contra todas as pessoas e manifestações religiosas diferentes da nossa. Isso, quando sobra algum tempo das disputas domésticas.

O mais trágico disso tudo é que conseguimos transformar a igreja, um local predestinado por Deus para ser o principal centro de convergência pacífica e fraterna para indistintamente todos os povos e credos, em um autêntico campo de batalha. Pervertemos o lugar escolhido por Deus para que convertêssemos os confrontos e provações do dia a dia em esperança na plenitude do seu Reino, no mais acerado ringue de disputas mesquinhas de poder, apesar da narrativa da transfiguração nos mostrar que o verdadeiro combate não é o do monte, mas aquele que nos aguarda no vale.

Certa vez Jesus disse que a sua igreja seria edificada sobre a rocha e que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela. Tanto no consenso cristão quanto na Nova Tradução da Linguagem de Hoje da Bíblia, prevalece a ideia de que a igreja é suficientemente forte para resistir as todas investidas que o mal intentar contra ela. Que me perdoem os exegetas e teólogos de plantão, mas este não é um texto que serve para nos tranquilizar quanto à solidez estrutural da igreja. Pensando desta forma vamos concluir que mesmo que o inferno estabeleça suas fronteiras na porta da igreja, não terá poder para invadi-la e conquistá-la. A igreja que pensa assim já foi invadida e conquistada pelas forças do mal, só falta ser avisada. O texto quer dizer literalmente o contrário. As palavras de Jesus são a garantia de que as portas do inferno não resistiriam a qualquer investimento consciente da igreja contra elas. E isso não é uma falácia, a história está ai para provar. Aquela humilde, insipiente e perseguida igreja que se reunia nos porões fétidos das sombrias catacumbas de Roma, fez ruir não somente as portas, mas toda a estrutura do maior império que a civilização já conheceu.

Não precisamos voltar ao passado distante para atestar esta realidade. No passado recente uma das mais antigas e infames portas do inferno ruiu ante os olhos estupefatos do mundo. Aquilo que anos de diplomacia e negociações não foram capazes de concretizar, Deus o fez com umas poucas crianças. Quem acompanhou a queda do muro de Berlim pôde ver o horror que se instalou nos olhos daqueles bem treinados soldados, quando um grupo de crianças investiu contra eles fortemente armadas com ramos de flores. Eles viram algo que nem todas as TVs do mundo puderam registrar. Enquanto as câmeras registravam a marcha dos pequeninos, os soldados se viram diante da glória de Deus, e por isso fugiram em debandada. Quem quiser que acredite que foram as circunstâncias que derrubaram aquele muro, mas a igreja não. Ela tem o direito de crer assim. Precisa enxergar que as grandes e decisivas vitórias do evangelho se dão fora dela, no vale que fica abaixo dela.

Mesmo que o testemunho das manifestações de Deus na história sejam registros fidedignos, a igreja não tem porque esperar testemunhá-las para agir na direção e em favor delas. Quando o povo recém liberto do Egito se viu entre a cruz e a espada, melhor dizendo, entre o exército de Faraó às suas costas e a imensidão do mar à sua frente, imediatamente cobrou de Moisés uma atitude. Atônito que estava pela extrema dificuldade que se apresentava, Moisés suplicou a Deus por uma rota de fuga ou, quem sabe, por uma rendição razoável. Mas Deus simplesmente lhe disse: Diga ao meu povo que marche.

Quem ousa contradizer que a rotina mais perfeita da igreja seja justamente a marcha. A igreja que marcha ao alto do monte, buscando orientação, inspiração e consolo. A igreja que marcha de volta em direção ao vale para testemunhar o que Deus fez por ela, e partilhar o amor que está incontido em seu coração com todos aqueles que estão aprisionados atrás das portas do inferno. Diga ao meu povo que marche. Diga a minha igreja que desça do monte. Diga a todo cristão que vá a todo lugar onde o evangelho se faz necessário. (continua)

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