O tempo e o Senhor do tempo

A persistência da memória, Dalí.
Os textos sugeridos pelo Calendário Litúrgico para hoje reforçam a ideia de eternidade: que Deus estabeleceu uma aliança com Israel para sempre, que o trono de Davi está firmado para sempre e que a sua casa (geração) permanecerá, da mesma forma, para sempre. Mas logo em seguida vem o salmista que, utilizando-se de um conceito de eternidade que deveria ser atribuído exclusivamente a Deus, nega a sua transitoriedade de ser humano com palavras que hoje lemos, repetimos e ensinamos sem nos darmos conta do seu peso: cantarei eternamente o teu amor, proclamarei de geração em geração a tua verdade.

Seria possível que os dois textos estivessem falando do mesmo conceito de tempo e tinham a mesma concepção de eternidade? Formulando melhor a pergunta: quais diferenças existem entre os diversos conceitos de tempo e de eternidade que encontramos na Bíblia e os que aceitamos como válidos para hoje?  


Para os primeiros escritores bíblicos, conhecidos pelos estudiosos como os javistas, porque chamavam Deus de Iahweh ou Javé, traduzido em nossas Bíblias por Senhor, a noção de tempo é bem simplória. Quando eles escreveram No dia que Javé fez o céu e a terra  (Gn 2,4) não estavam de forma alguma se referindo a este dia como um dia qualquer do calendário. Isso fica claro porque imediatamente após ele afirma que esse dia é anterior ao próprio calendário: ainda não havia árvores nem relva, porque o javé não havia feito chover. Para ele o tempo é o espaço em que os atos de Deus e posteriormente do homem executam mudanças.

Mesmos quando Deus expulsa Adão e Eva do Paraíso e fixa o número dos seus dias, Deus mostra preocupação com a qualidade de vida que eles terão no decurso desse tempo. Em vez de simples folhas de figueira agora dá eles peles como vestimenta. Isso faz com que se sintam mais protegidos e vivam mais.

Após o dilúvio, o javista entende que o ser humano não é eterno como a terra em que vive, mas também percebe que embora o indivíduo não seja eterno, a humanidade assim o será. É tão confiante nisso que coloca na boca de Deus promessas e garantias: Estabeleço a minha aliança convosco: não será mais destruída toda carne por águas de dilúvio, nem mais haverá dilúvio para destruir a terra (Gn 9.11).

Nos escritores sacerdotais encontramos uma noção de tempo refletida e diferenciada. Eles já mostram preocupação em fixar datas precisas no tempo. Para eles é importante que Israel viveu cativo no Egito por 430 anos, que exatos três meses após a sua saída chegaram ao Sinai. Na sua concepção de tempo mais bem estruturada conseguem qualificar os diversos tempos. Já existe para eles o tempo da revelação, que é diferente do tempo da instrução como foi diferente o tempo da criação. Os tempos, para os escritores sacerdotais, são dádivas em que Deus concede as oportunidades. O homem, por sua vez, é testemunha desses tempos e deve reconhecer neles o quando e o como agir: Se hoje ouvirdes a sua voz não endureçais o coração, como em Meribá, como no dia de Massá, no deserto.

Os escritores deuteronômicos passam a diferenciar passado de futuro, contudo tem uma fixação especial pelo hoje. Em seus escritos a palavra hajjom, que significa hoje é repetida trinta e cinco vezes, e os seus derivados setenta e sete vezes. Havia uma distinção clara entre o tempo dos seus pais e o seu próprio tempo. Antigamente podia não ser assim, mas agora é. Obedecer A Deus no hoje o traz para mais perto, o que significa a alegria de dias felizes.

Isaías vai fazer definitivamente a diferença entre o pensamento hebraico e o grego. Isaías coloca Deus para além do tempo e diz que antes dele não houve, e depois dele não haverá. O profeta diferencia Deus da natureza e o coloca como senhor dos seus ciclos. Aquele que pode dar continuidade da mesma forma que pode fazê-la ser interrompida, pois faz do tempo apenas uma breve extensão das suas palavras: Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come,  assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei (Is 55.10-11).

Mas é com Jesus que o tempo tem a sua importância determinada. Ele derruba uma das maiores instituições judaicas, que era a guarda o sábado, com um meia dúzia de palavras: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa da sábado (Mc 2.27).  Para que se tenha uma vaga noção do quanto sujeitou o tempo ao homem, observemos como considerou o seu próprio tempo. O evangelista João quando registra a sua agonia nos seus últimos dias sobre a terra, dizendo o seguinte: Ora, antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim (Jo 13.1).

Pelo menos dois conceitos de eternidade podemos tirar dessas palavras:
O conceito de eternidade que se expressa no amor que não teve um começo: tendo-os amado, amou-os até o fim. É o que salmista declara com rara felicidade: os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra.  Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda (Sl 139.15-16). E também não terá um fimNa casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também (Jo 14.2-3). O tempo de Deus é na mesma dimensão do seu amor. Quando nos afastamos desse amor perdemos a noção de quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Um abismo se instaura em nós e não podemos sentir nada além do que as palavras de santo Agostinho: O coração do homem tem um vazio, e esse vazio é do tamanho de Deus.

O segundo conceito é o do compromisso: tendo-os amado, amou-os até as últimas consequências. Esta sim deveria ser a nossa única e verdadeira preocupação com a eternidade. Uma vez que não nos compete saber tempos ou épocas que o Pai reservou para si. Uma vez que Deus guardou para si a dimensão quantidade do tempo, cabe a nós o desafio da qualidade do tempo que ele nos concede. Uma coisa Jesus deixou bem esclarecida: isso só pode ser alcançado quando abrimos mão do nosso próprio tempo em favor de algo que está acima de nós, mas que ao mesmo tempo está dentro de nós, o Reino de Deus. O Reino de paz e justiça, mas que exige que não apenas amemos a Jesus, mas que amemos como ele amou: até as últimas consequências. 

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