Tudo é vosso

Galileu Galilei perante o Santo Ofício de Fleury (1797-1890)
Com o apelo de I Co 3, Paulo esperava por um fim em um capítulo obscuro da história da igreja: a divisão do corpo do Cristo que fatalmente acontece quando esta elege um pastor, um bispo ou algo afim como seu "padroeiro". Exortando severamente aqueles que estavam rachando a igreja, Paulo objetivava mais do que inverter a ordem vigente em Corinto, igreja onde cada grupo de pessoas se orgulhava de pertencer a um determinado ícone religioso.

Assegurando-lhes que não é a igreja que pertence a eles, pelo contrário, eles é que pertencem à igreja, coloca os coríntios frente a frente com importantes compromissos que eles, como cristãos, estavam negligenciando através da prática da tietagem pastoral.

Paulo, Pedro, Apolo e os demais que se seguissem a eles,  como cristãos, estavam debaixo da autoridade de Deus, assim como a vida, a morte, o presente e o futuro também estão. Ninguém melhor do que o pastor que conseguiu levar o evangelho mais longe para dizer isto. Podemos notar claramente que ele não está tentando, como se costuma fazer hoje, transferir as responsabilidades do ministério pastoral para os membros, está sim colocando a casa em ordem e determinando quem é quem dentro da igreja.

Quando lemos o texto citado acima verificamos que as funções eclesiásticas foram cuidadosamente bem definidas por Paulo. Aos apóstolos, como ele, cabem o lançamento da base da fé da igreja. Foram eles os comissionados diretamente por Cristo para a obra de construção do alicerce, sobre o qual toda a igreja que se diz cristã deve ser edificada. Este é um forte argumento pelo qual não podem existir apóstolos hoje em dia, o seu trabalho já está completo, sua presença não é mais necessária, as bases da igreja já estão lançadas. Ninguém mais ninguém lançar outra base sobre aquela que foi lançada, ou mesmo reeditar o lançamento das mesmas bases. Isto seria negar completamente a ação do Espírito Santo nos 2000 anos da história da igreja. 


Quando fala da base da igreja, Paulo não está se referindo às questões doutrinárias pelas quais as denominações se identificam, e sim da base que faz com que todos nós cristãos sejamos o que, no fundo, realmente somos: a única, santa e indivisível Igreja de Cristo. Colocando-se como modelo de ministério apostólico, fala do limite de sua obra: a mim coube apenas plantar. Obra que realizou com alucinada perseverança, tornando-se o maior disseminador de igrejas de toda a cristandade. 


Já para o ministério pastoral, a proposta que Paulo apresenta é inconfundivelmente outra. A respeito dos pastores, reconhece que eles são essencialmente os edificadores, ou, para usar a expressão grega encontrada no texto, os arquitetos. A estes pertence a construção de uma igreja fiel a Deus e à sua palavra, como também a consolidação das doutrinas, ritos e costumes, que são a sua identidade denominacional própria no grande rebanho de Cristo. A eles não pertence nem o cálculo estrutural do fundamento da fé e nem aquilo o que a igreja assume denominacionalmente, eles não são, ou pelo menos não deveriam ser, criadores de denominações separatistas, e sim consolidadores da denominação, para que esta execute a tarefa que lhe foi outorgada na grande comissão do Reino de Deus. O cálculo já foi feito no lançamento do fundamento da Igreja Cristã e as regras da denominação já existiam quando aconteceu o seu chamado para o ministério.
Também não cabe aos pastores o uso ou a apropriação da igreja para a promoção pessoal. Nestes casos, ainda vale a regra maior de João, o Batista: importa que ele (Cristo) cresça e eu diminua. Eles são, dentro da comparação que Paulo fez com o processo de semeadura, aqueles que depois de lançada a semente, tem a responsabilidade de regá-la, função para a qual, em Corinto, foi designado Apolo, o pastor que deu continuidade à obra. 

Outro bom argumento para que o pastor de igreja não seja denominando apóstolo, missionário ou coisa que o valha, é a equiparação das funções, ou seja, aqueles que plantaram, no caso os apóstolos, e aqueles que regam, os pastores, tem a mesma importância, isto é, nenhuma. Ambos são apenas cooperadores de Deus, para ser fiel a expressão grega empregada, trabalhadores braçais sem qualquer qualificação. O mais importante é Deus, que dá o crescimento da igreja que é composta de pessoas, que é a seara de Deus e o edifício onde habita o seu Espírito. Sem Deus no processo de edificação e sem a igreja, de nada adianta plantar com critério, ou regar com cuidado. As tarefas de ambos são reconhecidamente importantes, e para tanto, pastores e apóstolos receberão o seu salário na medida do seu trabalho na construção da obra quando esta for provada pelo fogo do tempo e pelas intempéries das circunstâncias. Visando a solidez da obra, reitera Paulo: veja cada um como edifica.

Quanto à tietagem pastoral, Paulo dá uma verdadeira bofetada nos que querem usar o evangelho como promoção pessoal, nos chamados galãs de púlpito. No capítulo anterior da mesma carta ele diz: Quando fui ter convosco não me não usei um vocabulário pomposo e nem meu prestígio de apóstolo. Estive entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor. A inspirada sabedoria de Paulo já havia tomado medidas e cercado a igreja de modelos e exemplos, para que os promotores pessoais de fama e de prestígios não se criassem entre eles. Paulo preparou a igreja para que aqueles que se valem da retórica e das manifestações de poder, que ainda são recursos ampla e descaradamente usados, não influenciassem os membros a se inclinar por este ou aquele pregador, e sim focassem, como ele, exclusivamente a mensagem que vem a cruz de Cristo. Ele, o grande apóstolo, era o mais humilde e o mais penitente entre todos os de Corinto.

Finalmente aos membros, o verdadeiro corpo de Cristo, cabe a responsabilidade da conservação, do uso e da aplicação prática do edifício construído na obra de Deus no mundo. Muito embora, alguém tenha tido a infeliz ideia de usar estes versículos para promover dietas espirituais, do tipo não coma isso ou não beba aquilo. Quando Paulo diz que somos o templo de Deus e que o Espírito Santo habita em nós, está se referindo à responsabilidade que todos temos na conservação da igreja para que esta seja pura, santa e incorruptível como num todo. Uma responsabilidade que não permite meio termo, ou assumimos ou caímos fora, porque sobre ela pesa uma severa advertência: Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Paulo está dizendo que somente aquele que é membro, aquele que faz parte do corpo, aquele que está dentro da igreja, possui a capacidade de conservá-la íntegra ou de destruí-la, desfigurando-a.

Atentem para o fato de que nem os apóstolos tiveram sobre si tal poder; nem os lobos travestidos de pastores conseguiram,  e nem ainda as portas do mais terrível inferno foram capazes de fazê-lo. Somente o membro, o simples membro é o que tem sobre si o poder de destruir a igreja. Não bastasse a destacada importância que Deus conferiu aos membros de sua igreja, ainda pesa sobre nós a responsabilidade maior sobre a sua obra, porque, como garante Paulo, tudo nos pertence: os apóstolos, os pastores, a morte, a vida, o presente e o futuro. Tudo nos pertence e tudo está sob a nossa responsabilidade. Tanto o membro mais antigo quanto à ovelha mais recém chegada ao rebanho gozam do mesmo privilégio e dividem os mesmos encargos.

Justamente por este motivo, quando fala da hierarquia entre os membros, Paulo utilizando-se, do capítulo 1 de ICo, nos apresenta um argumento incontestável, quando a si mesmo se eximiu de ser objeto da tentação de ser visto pelos coríntios como “pai espiritual” de alguns poucos privilegiados. Graças a Deus eu batizei a muito poucos nesta igreja: disse ele. Com este simples cuidado pretendia evitar que se criasse entre eles uma casta de membros com pretensa superioridade sobre os demais, alguém que quisesse se destacar pelo fato de ter sido batizado diretamente pelas mãos do apóstolo. Paulo havia tomado cuidado para que isso não acontecesse, para que ninguém se sentisse tentado a dizer: Eu sou de Paulo.

Uma rápida olhada no tempo presente constatará que o ensino de Paulo naufragou completamente. O que mais se vê hoje são divisões da igreja lideradas por este ou aquele pastor e subdivisões dentro de uma mesma igreja insufladas por membros cuja má liderança induz a sua separação em grupos rivais. São pastores que querem ostentar títulos cada vez mais escabrosos, e membros querendo assumir funções pastorais simplesmente para se colocar em destaque acima dos demais irmãos. A importância do ministério pastoral elevou-se tanto acima da condição de membro, que qualquer pessoa agraciada com um dom diferenciado, se autoproclama imediatamente pastor. O que mais se vê por aí são cantores pastores e cantoras pastoras, cujo ministério se resume a cantar aqui e acolá sem nenhum compromisso com o rastro que fica atrás de si. Nem mesmo a ordem protocolar obedecem, que manda que se coloque o título de pastor à frente de qualquer outro.

Paulo, com as rápidas palavras do versículo que intitulam esta meditação, nos orienta em toda ordem de atitude e responsabilidade. Tudo é nosso, no sentido de que toda a obra de Deus no mundo e tudo aquilo que é usado nela, pertence à igreja. Não a um membro mais do que a outro, não a pastores ou líderes religiosos e nem mesmo à denominação seja ela qual for, mas ao grande rebanho de Deus, que é a sua igreja. Esta, por sua vez, pertence a Cristo, por ter sido comprada a um preço impagável, por ter sido resgatada de onde de onde não havia mais esperança. A igreja pertence a Cristo, mas não como sua propriedade exclusiva, por ela ele morreu em obediência ao seu Pai, e a ele quer entregá-la no fim dos tempos, íntegra e imaculada. Onde não mais existiram judeus ou gregos, brancos ou negros, homens ou mulheres, apóstolos ou pastores, e onde em uma vitória final sobre toda o egoísmo e a indiferença, Deus será tudo em todos.
 

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