Manjedoura, fotógrafo não identificado |
Para
nós cristãos, principalmente aqueles que foram crianças na igreja, a cena dos
anjos e pastores nos arredores de Belém é por demais significativa. Não foram
poucas as oportunidades que nas celebrações do Natal, ora representávamos os
anjos, ora os pastores e quando o elenco era muito grande, até mesmo as
ovelhas. É que o povo de Deus, nesta época, quase que instintivamente procura
trazer à memória um pouco dos simbolismos daquela que é, sob todos os aspectos,
a mais maravilhosa história jamais contada. A história do Deus menino, do Deus que
se fez carne e habitou entre nós. Curioso que essa palavra no hebraico é mais
significativa do que pode expressar o noso verbo habitar. O texto diz que Deus tabernaculou, montou a sua tenta entre
nós. Por conta disso, particularmente o episódio dos anjos e pastores têm lugar
garantido como importantes símbolos do Natal.
O povo
brasileiro levado de um lado pelo sincretismo religioso e por outro pela sua
imensa criatividade, confundiu alguns destes símbolos e criou um rico folclore,
com reisados, pastorinhas, bois-bumbás etc. Talvez seja a tentativa mais válida
de contrapor à comemoração do Natal típica do hemisfério norte, onde os
símbolos são neve nas árvores, pinheiros, nozes, avelãs, coisas próprias das
regiões frias. Uma comemoração de Natal completamente imprópria para o nosso
calor de 42º. Quem sabe, se não fôssemos tão intransigentes, não comemoraríamos
um Natal tipicamente brasileiro, com marcas e símbolos próprios de um país
tropical? Mas nós somos colonizados, trazemos dentro de nós uma forte herança
do protestantismo americano que impôs os seus próprios símbolos como os símbolos
genuínos do Natal. Como por exemplo: Papai Noel, renas puxando trenós, perus de
Natal etc. Mas independentemente de qualquer tradição ou região, o Natal, em
si, possui sinais próprios. Sinais autênticos, que não foram forjados por nenhuma
cultura. Sinais como aquele que foi dado aos pastores, naquela noite fria de
Belém: Encontrareis uma criança envolta
em faixas e deitada em uma manjedoura. Este é um dos sinais que não devemos
somente reviver ou mantê-los vivos em nossa memória, mas devemos, acima de
tudo, estimular as nossas crianças, para que elas, por sua vez, tenham também a
oportunidade de fazer parte, através das asas dos anjos ou do cajado dos
pastores, da memória do Natal, que é todo um universo de marcas, símbolos e lembranças
daquela humilde manjedoura. E esta é a oportunidade para meditar sobre alguns
desses símbolos autênticos do Natal.
Uma
das marcas imutáveis do Natal é o censo. O censo que César Augusto mandou
levantar em todo o Império Romano. O imperador queria saber quantos eram os
seus súditos, onde e como viviam e o que produziam. Era um dado importante para
o governo romano esta estatística. Importante para Roma, é claro, porque o
censo não tinha o intuito de promover o povo socialmente. Não visava conhecer
as reais necessidades do povo ou como supri-las. O censo tinha o caráter
exclusivamente opressor. O imperador queria saber quem eram e onde moravam
aqueles que poderiam ser mais explorados, o quanto mais de impostos poderia ser
cobrado e de onde o Império Romano poderia extrair e concentrar mais riqueza.
É
neste contexto que nasce Jesus. O filho de Deus anunciado pelos profetas,
prometido desde a fundação do mundo, mas neste censo ele não é merecedor de
qualquer distinção. É contado como qualquer um de nós. Nivelado aos explorados
e aos oprimidos. Recebe como identificação um X no papel, apenas um número.
Passa a ser mais um descaracterizado a viver naquilo que os pensadores chamam
de zoológicos humanos. Esse é o Natal do censo. Um Natal sem rosto e sem
identidade. Não é o Natal de alegria e de paz. Não é o Natal do Espírito. É sim
um Natal de miséria e opressão. Um Natal de carne e osso e, sobretudo, de muito
sangue.
Outra
marca perpétua do nosso Natal é a manjedoura. Olhamos as réplicas atuais com
admiração, e até com certo sentimento poético. Jesus ali, deitado na manjedoura,
cercado pelo boizinho, pelo galinho, pelo porquinho e pelo burrinho. Uma típica
cena que retrata a calma e a tranquilidade pastoril. Mas essa ideia de paz
harmoniosa nos desvia da mensagem real do manjedoura. Que Jesus ao nascer foi
colocado junto aos animais, em um coxo, esse é o nome certo, infectado de cheio
de excrementos. Ambiente absurdamente impróprio para um frágil recém-nascido. É
na manjedoura que Jesus perde aquele pouco da humanidade que o censo do
imperador romano lhe havia conferido e agora passa a não ser mais contado entre
os homens e mulheres. Jesus agora é achado entre os animais. Este é o
verdadeiro sentido da manjedoura. Esta é mensagem do Natal contida naquela
manjedoura. Ali está Jesus, completamente despojado de sua divindade e realeza,
despojado até mesmo da sua condição humana. Uma cena radicalmente antagônica à
do consumismo que a data passou a representar. É bom que se fale em meio à
opulência das comemorações, que na manjedoura Deus não está fazendo um elogio à
pobreza. Deus não se faz presente para enaltecer a miséria como virtude. Deus
está denunciando em alta voz que, assim como o seu filho unigênito, muitos dos
seus filhos estão nascendo e vivendo em condições sub-humanas. Este é o Natal
do manjedoura. O Natal que não contempla a harmonia, que não se anuncia pela
paz, mas pela total degradação do ser humano desde o seu nascimento.
Outro
símbolo do Natal, e talvez este seja o mais trágico, diz respeito ao banho de
sangue ocorrido em Belém e em seus arredores que ficou conhecido na história
como a matança dos inocentes. O edital de Herodes que promove o assassinato de
todas as crianças com menos de dois anos, com o objetivo único de exterminar,
ainda no seu berço, o Messias prometido. E agora, Jesus não é nem mais contado.
Sua presença, antes ignorada, a partir daquele decreto passa a ser indesejada.
Passa a ser caçado como um elemento nocivo à sociedade, como alguém que deve
ser eliminado a qualquer preço. Tão nocivo que até mesmo a chacina de inocentes
seria justificável. Contra o Príncipe da Paz se levanta todo um exército exterminador.
Esta escalada de tragédias, além de fazer com que Jesus e sua família tenham
que se refugiar no Egito, torna-o, como dizia o rev. Jonas Rezende, o exilado
político mais novo da história.
Somente
os mais inspirados profetas puderam antever cena tão absurda. Que lembranças os
habitantes de Belém, principalmente aqueles que perderam seus amados filhinhos,
passaram a ter do primeiro Natal? A divina música do coro de anjos foi abafada
pelos gritos de horror e de dor. Um Natal sem esperança. Mas, infelizmente,
este é um poderoso símbolo do nosso Natal.
As
aflições de Maria também marcam de maneira muito forte o nosso Natal. Aquela
jovem mulher que por ser justa e por achar graça diante de Deus, teve a sua
vida virada de cabeça para baixo. Uma gravidez não programada ou mesmo
desejada, o repúdio inicial de José, seu futuro marido, o parto longe de casa e
sem qualquer condição de higiene, as ameaças que pairavam sobre o seu filho,
são motivos mais do que suficientes para tornar o seu Natal bastante diferente
do que é comemorado hoje. Mas faça-se em
mim a vontade do Senhor. Tenho para mim que mais do que uma profissão de fé
este é um grito desesperado de quem não encontra mais nenhum sentido nas coisas
e sem esperança se entrega incondicionalmente nas mãos de Deus. O Natal de
Maria sinaliza a renúncia e não a troca. Sinaliza a irrestrita doação de si
mesma contradizendo as garantias e tomada de posse das bênçãos tão propagadas
em nosso meio. No Natal de Maria, Deus desce ao mais profundo abismo da miséria
humana e de lá faz a sua opção preferencial.
O
Natal na visão de São Francisco de Assis é um símbolo que vai muito além do nosso
Ecumenismo e faz do Natal o símbolo máximo da confraternização universal e do
diálogo inter-religioso. No presépio de Francisco de Assis podemos detectar na
mesma cena: anjos e homens; homens e animais; judeus e magos do Zoroastrismo,
ricos e pobres, pastores e reis; céus e terra. A mistura de tudo aquilo que se
conhece e até mesmo do que se imagina. O que poderíamos chamar de ecumenismo
total e irrestrito. Todos a uma voz cantando “Glória a Deus nas alturas”. Mas
até mesmo os símbolos positivos nós conseguimos esculhanbar. Se algum
desavisado contemplasse tal cena afirmaria: O
Reino de Deus está implantado definitivamente. Mas bastaria esta pessoa
desviar um pouco o olhar para os nossos dias, e veria que no mesmo lugar onde
os anjos cantavam o Gloria in Excelcio
anunciando paz na Terra, hoje se trava uma guerra absurda, isto é um tremendo
tapa na boca dos anjos do coro celestial.
Mas não
nos iludamos que este símbolo ficou gravado apena nas barbáries da antiguidade
ou na história de nossos ancestrais. Não nos enganemos, posto que aqui no
Brasil as coisas sejam diferentes. Autênticas guerras são travadas diariamente
em nossas cidades, mesmos nas mais interioranas. O índice de mortalidade
infantil em nosso país é de fazer Herodes se sentir humilhado por promover uma
chacinazinha tão restrita. Nossas crianças não são mais colocadas em estábulos,
mas sim abandonadas em depósitos de lixo. Alguma coisa está muito errada: ou os
anjos não cantaram a música certa ou nós não somos homens e mulheres de boa
vontade, porque a paz na Terra não existiu um único dia sequer ao longo destes milhares
de anos de história.
Queria
acrescentar ainda mais um símbolo, aquele que ficou definitivamente esquecido
por todos os cristãos, independentemente de sua cultura ou do seu local de
nascimento. Um símbolo que foi por nós designado a ser apenas mais um adorno em
uma árvore que sequer é símbolo próprio do Natal, mas o que é a força de um
misticismo? Torna uma árvore mais evidente e mais relevante do que o símbolo
que o próprio Deus usou para mostrar aos povos distantes que chegara a hora e onde
seria local do nascimento do seu Filho: a estrela de Belém.
Enganam-se
aqueles que pensam que significado da estrela de Belém seria um simples guia
para os magos que foram inadvertidamente atrás dela. Sua presença no céu
significava o fim da magia, o fim do poder mágico sobre a humanidade. Para entender
esse poder mágico precisamos conhecer as religiões que dominavam o mundo
naquela época. Pois todas elas lançavam uma mortalha de fatalismo sobre a vida
humana. Elas diziam que tudo estava previsto e que ao ser humano restava apenas
cumprir a sina para a qual estava fadado. A crença dominante rezava que o
destino de todas as pessoas era escrito nas estrelas na hora do seu nascimento.
Bom, isso não mudou tanto, porque ainda existem hoje católicos e protestantes
que não saem de casa sem consultar os astros.
Foi
num mundo assim que a estrela de Belém brilhou. Ela não estava lá por acaso.
Ela não era uma estrela qualquer que cumpria a sua trajetória no universo. Ela
estava lá para fazer o que o Deus Eterno lhe mandou fazer. Estava lá guiada
pela inteligência divina. Justamente aquilo que representava o símbolo máximo
da dependência humana é convocado por Deus para revelar ao mundo e principalmente
aos que conheciam bem o movimento previsível das estrelas, que existe um Deus
que governa todas elas, que as enumera e as chama pelo nome, que pode fazer com
que elas executem a sua vontade, mudando radicalmente todo o entendimento que
os magos, astrólogos e observadores dos céus acumularam até então.
Como
consequência disso, nós fomos libertados dessa sina fatalista pela ação do
nosso Deus. Foi ele quem nos libertou. Nessa liberdade ele tem nos lembrado
que, uma vez livres do destino, somos guiados à responsabilidade. Agora somos
chamados a ir aonde não queremos ir. A amar quem não queremos amar. A servir a
quem não queremos servir. Alguém imagina que Maria e José empreenderam a penosa
viagem de Nazaré a Belém por vontade própria? Acham que ela supôs que daria à
luz numa estrebaria? Alguém imagina que os magos viajaram tanto para adorar um
rei que não nasceria num palácio? Esta é a lição mais difícil do Natal: a
estrela vai nos guiar por caminhos que não queremos trilhar. A estrela brilha
para nos mostrar a realidade deste mundo e para mostrar que o nosso caminho é
outro, muito diferente do que aquele que gostaríamos que fosse. A mensagem da
estrela nos diz que somos livres, está certo, mas que esta liberdade tem o
preço e o tamanho da nossa responsabilidade.
Talvez
seja a hora de perguntar: O Natal e realmente uma coisa boa de se comemorar? Devemos
continuar inculcando em nossas crianças a sua lembrança? O Natal é ou não é uma
festa alegre? É claro que é. Apesar de tudo que foi dito, apesar de sentirmos
na pele, em maior ou menor intensidade, estas tragédias, a despeito de toda a
maldade que tem imperado ao longo da nossa história, o Natal é a nossa maior
garantia de que é Deus, e não as tragédias, que tem a última palavra. O Natal é
certeza de todas essas mazelas, por pior que possam nos parecer, podem e devem
ser evitadas. O Natal é a firme convicção de que o Deus que se encarnou em
Belém, continua vivo, presente e atuante em nosso meio. O Natal é uma garantia
sólida, não baseada em hipóteses ou promessas vazias, pois quem nos garante é
mesmo Jesus que sofreu todas as aflições e angústias que se transcorreram
durante o primeiro Natal. E em meio a toda essa apreensão ele nos desafia
dizendo: Se o mundo vos aborrece, sabei
que antes do que a vós aborreceu a mim primeiro... mas tende bom ânimo. Eu
venci o mundo.
Todas
aquelas aflições não detiveram o Salvador do Mundo, apenas serviram para tornar
a sua vitória ainda mais incontestável. Mas nós sabemos que o mal, embora
vencido, ainda respira. E que a vitória de Cristo sobre esse mal se dá a cada
dia, com o seu nascimento em nossas vidas. Devemos comemorar o Natal não
somente com os seus símbolos próprios ou com aqueles que acrescentamos, ou
ainda em uma determinada data do calendário litúrgico. Devemos comemorar o
Natal sempre e de todas as formas. Celebrar sem cessar a vitória de Jesus sobre
as forças do mal no mundo, como também sobre o mal que habita no mais profundo
recanto do nosso coração, porque cada dia que nos esquecemos de comemorar esta
vitória é mais um dia que o mal triunfa. E se insistirmos no esquecimento, é
possível que venhamos a sucumbir na profecia secular do místico Angelus
Silesius, monge católico convertido do luteranismo:
Nasça Jesus mil vezes em Belém
E não em teu coração.
Estás perdido para o além.
Nasceste em vão.
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