Duas cidades, três homens

Agostinho de Hipona, auor autor não identificado

E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai. Assim que já não és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo. Mas, quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que por natureza não são deuses. Gálatas 4:6-8

Santo Agostinho, em sua preciosa obra Cidade de Deus escrita no quinto século, nos oferece uma pista bem concreta de como funciona a mente ocidental em contra partida a cidade dos homens. Ele a expõe da seguinte forma: dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até o desprezo de Deus – a terrestre; o amor de Deus até o desprezo de si – a celeste. Por mais divergentes que essas cidades possam parecer, Agostinho nos mostra que elas estão sempre se cruzando, pois ambas não se referem a locais geográficos distintos, porém, buscam retratar a postura do homem diante das realidades do amor a Deus o do amor a si mesmo.

Mas aí vem Paul Tillich, no século XX, e eleva esse pensamento ao estremo ao dividir a postura humana diante dessa mesma realidade em três estágios definidos.

O primeiro estágio ele chamou de autônomo. O estágio em que o homem se imagina senhor da sua própria existência. Para este homem tudo começa e termina nele. Ele é o único provedor, o único mantenedor e o único cuidador de si e de sua família. Nesse estágio, quando não admite a existência de Deus, questiona todas as situações onde o divino possa ter alguma participação. Sua lei se fundamenta exclusivamente na sua razão e por ela pauta toda suas decisões, condutas e justiça.

Mas há um segundo estágio, o que Tillich vai chamar de heterônomo, hetero nomos, lei estranha, ou lei fora de si. O estagio em que o homem é regido por uma consciência que está além de si mesmo, mas que não consegue definir bem qual é essa consciência. Seu estado emocional é sempre receoso em tudo que faz. Por não ter segurança em suas decisões transfere para algo fora de si, por mais supersticioso que possa parecer. Seu temor é constante e sua vida não passa de uma eterna suspeição de si e dos outros. É do tipo que acende uma vela para um santo ajudar e outra vela para o outro santo não atrapalhar.

Mas Tilich fala de ume terceiro estágio da consciência humana, o teônomo (Teo, Deus; nomos, lei). Esse é o homem que não sabe bem se faz o que faz por sua própria vontade ou se atende a uma vontade de Deus, posto que em sua cabeça ambas a situações se confundem. Esses não têm preocupação alguma com o fato de estarem certos ou errados em suas decisões, pois se veem guiados pelo Espírito Santo de Deus. Homens a quem Paulo, em Romanos 8.14, chamou de Filhos do Espírito.

Por mais estranho que possa parecer aos conceitos do evangelho pregado na maioria dos nossos púlpitos e altares, é o terceiro estágio que, tanto Agostinho quanto Paulo e Tillich, consideram primordial, muito embora não contemplem qualquer dos ditames exigidos pelas igrejas na recepção dos seus membros. Não fala em dízimo, em testemunho, em abstinência, muito menos de assiduidade aos cultos. Fala de uma consciência tão livre que nem mesmo o mais eloquente dos pregadores pode fazê-la escrava dos seus conceitos.

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