Jesus no deserto, Ivan Kramskoy |
A espiritualidade do Primeiro Testamento dificilmente se concilia com uma doutrina de ascese ou abstinência. A terra com tudo o que ela contém é boa em virtude de sua origem e foi confiada ao homem com uma tarefa positiva (Gn 1).
Comer, beber, trabalhar, tudo isso é um dom de Deus, mesmo segundo o pessimista que é o Eclesiastes 2.24; 3.12; 5.17. Um termo técnico para abstinência não há nem no Primeiro nem no Segundo Testamentos. Quem se abstém de bens terrestres terá algum motivo especial:
Jejum, público ou privado:
Abstinência total ou parcial de comida e bebida por um determinado tempo, seja para acentuar a atitude interna de penitência, reconciliação ou luto (Lv 16.28ss: dia anual de expiação; Ne 9.1; Zc 7.3.5; Dn 10.2), seja para dar mais força a uma súplica, p. ex., em perigo de guerra (Jz 20.28; I Sm 7.6), nas secas (Jr 14.12), em perigo de morte (Es 4.16; Jn 3.5ss), seja por causa de experiências místicas (Ex 24.18; I Rs 19.8).
De algum modo formou-se também em Israel um catálogo de seres puros e impuros. É preciso abster-se do contato com seres e objetos impuros, para não incorrer numa impureza ritual. São declarados impuros, p. ex., as mulheres logo depois do parto (Lv 15), os leprosos (Lv 13), a carne de muitas espécies de animais (Lv 11. 2-47), os cadáveres (Nm 19.11ss; Lv 21.1. A pureza cultual, necessária como preparação para o encontro com a divindade, parece ter pertencido também certa a. sexual (Ex 19.5; I Sm 21.5ss; II Sm 11.11).
Uma prática muito antiga de ascese é o nazireato, vagamente formulado em Nm 6.1-21: alguém consagra-se a Javé assumindo uma tríplice obrigação: não cortar os cabelos, abstinência de bebidas alcoólicas, não tocar em cadáveres. A abstinência do vinho pode ser interpretada como recusa da cultura cananeia e, por conseguinte, como profissão de fé em Javé, o Deus de Israel. Isso fica mais claro ainda no caso extremo dos recabitas (Jr 35.5-8) que se abstêm de vinho e continuam vivendo em tendas: não a cultura urbana, mas a vida errante dos nômades exprime a verdadeira relação entre o israelita e Javé. Esse tema reencontra-se de alguma maneira no fato de os levitas não possuírem terra: sua única herança é Javé (Dt 10.9). Que os nazireus e recabitas davam em Israel um testemunho positivo, provam-no textos como Am 2.11; Jz 13,4; I Mac 349.
Também o Segundo Testamento não contém em princípio nenhum dualismo na sua visão do homem e do mundo. A luz da obra salvífica de Cristo, no entanto, chegou-se a uma consciência mais clara da ambivalência do mundo: de um lado opera nele Satanás, “o príncipe deste mundo” (Jo 12.31), de outro lado também o Cristo “que tirou o pecado do mundo” (Jo 1.29). Por isso o cristão é exortado a abster-se do mundo enquanto esse está dominado por Satanás (I Jo 2.15ss). Em termos paulinos: morto com Cristo para o pecado, pelo batismo, o cristão não se deve colocar mais a serviço das obras de satanás, nem a serviço da lei, mas do Deus vivificador (Rm 6), não se comportando em consonância com este mundo (Rm 12,2), não vivendo segundo a lei da carne, mas do espírito (Rm 8.5ss).
Na morte com Cristo deve o cristão também afastar de si as regras puramente humanas sobre abstinência no comer e beber (Cl 2.16-23). Dão uma espécie de satisfação mas não aproximam o homem de Cristo. Melhor do que esta falsa ascese é a mortificação cristã (Cl 3.5ss), a erradicação do pecado. Ainda I Tm 4.1-5 adverte contra abusos gnósticos respeitante a abstinência no matrimônio e no uso de comida e bebida. “Deus os concedeu para que fossem tomados com ação de graças”.
Fonte: Dicionário Enciclopédico da Bíblia. A Van Den Born
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